Deploro tudo que
escrevo no meu pêndulo multipolar.
Wil Vaccari
Bem,
antes de continuar minha história, gostaria de acrescentar só mais um detalhe
sobre como vejo o que escrevo. (Ou, no dizer dum acadêmico qualquer, “meu
processo de escritura”.)
Não
se preocupem, não vou deitar falação teórica a respeito. Deixo a tarefa para o
retro-referido acadêmico. Apenas ilustrarei o tema com um instantâneo dos
vários estados em que escrevo. O que se segue neste sétimo capítulo é um
exemplo do que verti ontem à noite sentado à minha mesa no canto mais escuro do
buteco do Lacerda depois de engolir meia garrafa de vodka. Quero crer que, além
do álcool, este trecho sofreu uma influência combinada de Lispector com Nelson
Rodrigues. Sei que soa absolutamente improvável, mas acredito que seja o
diagnóstico mais próximo da coisa. Não sei dizer quanto de Lispector e quanto
de Nelson há aqui. Não vejo mal em ficarmos no meio-termo. A título de
advertência, em outras passagens haverá mais de um e menos do outro e
vice-versa. Em outras, ainda, nenhum dos dois, graças aos céus.
É
chato discriminar. Eis o que penso da batelada de questões que a vida coloca.
(Parece uma daquelas máquinas de treinar tênis, desvairada, centenas de bolas
arremessadas em minha direção todas duma vez e eu, pobre, sem raquete.)
Literatura
requer coragem, a vida, não. A vida não requer nada, a literatura, tudo. A vida
não requer nada porque não se presta a conjugar seja verbos diretos ou
indiretos. A vida não se presta a nada, pois não existe. É apenas um nome, nome
abstrato que inventaram para designar a fenomenal combinação formada pela
incidência e as cores das luzes, a reverberação dos sons e seus ecos, a
intangibilidade da neblina. E, acima de tudo, a incomensurável passagem do
tempo. Que nossos tolos relógios ficam loucos tentando medir.
Balbuciar
“vida” é criar uma prece de exaltação ao esquecimento. Pensamos que sabemos do
que falamos quando proferimos esse nome. Mas quando falamos “vida”, o tempo
simplesmente para pela duração necessária para pronunciarmos as duas sílabas
enquanto algo desmorona dentro da gente num gigantesco movimento inaudível,
insentido, que aqueles agora cadáveres da região serrana do Rio e de Santa
Catarina e da estação Pinheiros do metrô de Sampa devem ter vislumbrado em toda
sua magnificência e horror um segundo antes de a avalanche carregar seu mundo
embora. A vida é uma montanha que rui, rui e rui quando pensamos que é nosso
dever — e pior, missão — enfrentá-la. Não passa duma ideia cheia de vácuo que
imaginamos estar sempre guardadinha ao alcance da nossa necessidade de
substância.
A
literatura requer tudo porque é feita da vida que não há mas que mesmo assim
constitui sua origem e sua base. Para mim — e, imagino, para quem quer que
escreva — é vicária, i.e., exerce um papel de substituta na falta de algo mais
apropriado. Como tal, quebra-galho. As palavras, que são seus constituintes, e
como comprovou o linguista francês Saussure, são arbitrárias. Não têm nenhuma relação legítima ou de
causa e efeito com o que conotam. (Mas não vou tomar esse atalho, é deveras
bananoso.)
A
literatura, impossibilitada de compreender algo que é inalcançável às palavras,
tem de se contentar com tratar de gente como a gente através do teclado de
gente como a gente. Ainda se nosso teclado tivesse tivesse milhões, bilhões de
teclas...
Daí
o pega-pra-capá em que os “pensadores” entram há pelos menos uns 4 mil anos.
Daí, também, um sinal de alerta aos frívolos que dispensam os que se dispõem a
tentar agarrar o rabo da besta cum seco piparote de seus dedões limpos do
sangue e a assepsia de sua inaquilatável ingenuidade.
Blake
provavelmente sabia do que estava falando nesse seu dístico sobre
excesso/sabedoria. Leio Blake desde rapazote e por anos mantive um poema dele, London, emoldurado e pendurado
numa das paredes do meu escritório, entre aquela foto em que Pessoa está diante
dum balcão virando um copo de Clarete e um retrato de Kafka amarguradíssimo.
Minhas paredes eram cobertas dos grandes. Me sentia protegido e meio cúmplice.
Um dia tirei tudo, deixei só o Kafka, imagino que sem nenhuma razão particular.
De
qualquer maneira, não acho que exista (grande) poeta que se mantenha ao largo
do excesso ou não se devote a buscar algo de sabedoria. Assim como não há grande
poeta que passe a existência propalando esse otimismo bobo a que chamo de
de-bem-coa-vida. Não existem grandes poetas otimistas, joviais, assertivos,
leves. Period.
Tenho
dúvida se experiências intensas sempre são enriquecedoras. O que sei é que são
as que ficam e que isso é o óbvio. Também tenho (grande) dúvida sobre a
utilidade da experiência na formação do meu intelecto. Digo, A Experiência, não
apenas as ruins. Venho guardando diligentemente comigo muito do que vivi na
adolescência e nunca deixo de sentir inveja de mim naquela época quando lembro.
Ser provido de recursos vocabulares para apreender a experiência não é a
questão aqui. A adolescência é um distanciamento do mundo tão assoberbante e
autêntico, que passamos (nós, deslocados) o resto da vida tentando compreender
e, tomara, reviver. O que nos deixa um travo azedo na boca. Tudo parece ter sua
hora.
Rimbaud
atingiu seu auge estético aos parcos 16 anos. Nessa idade eu ainda lia tudo que
me caísse nas mãos, absolutamente inseguro de que rumo tomar. Se eu-aquele
pudesse ter perguntado a eu-este, eu-este responderia, esquece essa bobagem de
rumo. Eis um dos grandes problemas do fenômeno da experiência. Esta faz parte
do nosso instinto de sobrevivência e leva de roldão quase tudo que pensamos ter
de sagrado em nós.
Iluminação.
Iluminação?
(Estou me esforçando para resistir a uma das minhas piadas.)
Se
dissesse quantas vezes atinjo a “iluminação” num só dia, vocês na certa ririam.
Iluminação, e “rumo”, são conceitos que me enfiam na cachola desde que aprendi
a falar e de que, junto com todo o resto de lixo alheio que me obrigaram a
aceitar como meu, me esforço dia após dia para atirar fora.
Pensar,
pensar de verdade, exige demolir os monumentos mentais que nos inculcam desde o
berço em nome da sobrevivência. Ponto para a raça. Afinal, não devemos
desprezar os 5 mil anos em que vimos aprendendo a derrotar a natureza para não
morrer de fome e frio. Mas, de novo, nada a ver com escrever. Por que não
escrever no escuro? É, acho, o que fazem os escritores em sua maioria. A
escrita tem uma luz própria que leva indiferente o autor subjugado e que
prescinde da nossa. De minha parte, comecei a escrever do jeito que gosto
depois que percebi que tinha de me desfazer dos monumentos erguidos por outros.
Aos vinte, escrevia empolado e insincero qual um causídico fazendo um pleito a
um magistrado. Acho que é por isso que muitos escritores jogam na lata de lixo
grande parte do que verteram antes de atingir a “maturidade” intelectual. Hoje
obro muita porcaria e me dou por satisfeito.
Seja
como for, essa iluminação excelsa só cabe aos excelsos. E na forma como vejo as
coisas hoje, iluminação para mim guarda uma irrecorrível conotação de
religiosidade e dessa procuro cair fora no ato. Os budistas se dizem iluminados
mas parecem não saber necas de si mesmos. E ainda cometem terríveis injustiças
em nome de sua inner light.
Bebo,
e fumo, por prazer, não necessidade ou buscando inspiração. Com o tempo você
aprende que o prazer é um bom critério de desempate. Na falta de outros minimamente
confiáveis. Que outras alternativas você tem? Seu pai lhe ensinou a salvar a
própria pele, e tal ensinamento mastodôntico acachapa todos os outros que no
fundo você sabe que devia, ou podia, ter aprendido e não aprendeu.
Para
mim particularmente é um aprendizado recente. Sempre cometi os chamados “excessos”.
Mas antes eram pelas razões e para os propósitos errados. Na maioria me levavam
a fugir, sem nenhuma ideia para onde. A fuga talvez seja o maior dos nossos
erros. Nos ensinam a ser covardes, lição que se enraíza indelevelmente em nosso
cérebro. E as implicações são simplesmente nefastas. Desenvolvemos uma blindagem de que nada sai e em que
nada entra. E nos enclausuramos numa casamata, munidos duma arma que não
sabemos direito o que seja, para derrotar inimigos que não sabemos direito quem
são.
Não,
meus excessos não fizeram nem fazem de mim um visionário. Não quero nenhum
poder de enxergar além de mim ou do que quer que seja. Minha limitadíssima
realidade me basta. E é imensamente mais do que sou capaz de destrinchar. Meu
escritório fica a uns 30 metros da minha casa. Me dou por feliz quando ao longo
desse trajeto que percorro em 20 segundos consigo descer um tico em direção às
profundezas cuja porta ora encontro aberta, ora sequer desconfio que exista e
tenho a chance de me sentar à minha mesa ainda retendo algo digno de nota. É
raro. Minha cabeça tem foro próprio e não dá pelota às minhas vontades. Eis
outra lição que aprendi tarde. Antes, vivia tentando botá-la num arreio,
guiá-la pelas belas sendas da imaginação. Minha luta diária é exercitar o
descontrole. Não é moleza, ó mãe.
Depressão.
Se
você chegou a um nível de depressão equivalente ao meu, sinto tremendamente e
torço para que consiga se safar. Vai soar patético mas deprimidos me dão vontade
de chorar, por conhecimento de causa.
Sempre
curti brincar de deprimido. Não sabia distinguir de tristeza, bode, tédio,
ódio, bobagens normais. Vejo a molecada por aí se proclamando deprimida e
penso, você nem imagina a fria em que pretende se meter.
Na
minha família parece ser herdada. A minha foi deflagrada com a morte de mamãe
aos 95 anos, os últimos cinco prostrada de fadiga de viver, sinais diários do
fim, e eu me considerava relativamente preparado. Outra vez, as peças que a
racionalização nos prega.
Na
semana seguinte, deitado no sofá lendo um livro que prefiro não dizer qual
é, de repente me senti num estado inédito e irreconhecível. Até aí, mais
ou menos normal, sempre tive essas mudanças de “humor”. Imaginei que amanhã
passaria, como das outras vezes. Piorou, mas. Em dois dias estava catatônico,
inerme, destituído de pensamentos e vontades e desejos e senso de
autopreservação. Levei dois meses para admitir que precisaria de ajuda. Se
vivesse sozinho, seria definitivamente o fim. Morreria de olhar fixo no teto do
quarto.
É
um desespero insolúvel. Quem quiser ter vaga ideia, leia Darkness Visible, de William
Styron. Um dos meus poucos heróis.
Périplo
íntimo, certezas castradoras, coragem de se atrever à viagem, Blake e o excesso
de si mesmo.
Vou
fazer um tipo de confidência. Sei que é um perigo — depois vão querer usar
minha sinceridade contra mim. Já aconteceu antes.
Em
algum momento entre a pós-adolescência e a idade da razão experimentei um
turning-point. Minhas certezas mais instintivas e naturais cederam terreno às
injunções do pragmatismo vital. Foi exatamente quando emergiram minhas
primeiras noções do que significa ser adulto e responsável. Renunciei ao meu “projeto”
pessoal, pois que o tinha muito bem claro na cabeça, para me submeter às
inexoráveis rodas de que fala Herman Hesse.
Como
que por encanto (as tais injunções etárias são de fato irresistíveis), vi que
chegara a hora de abandonar minhas ilusões infantis e finalmente partir para a
briga. Parei de escrever, deixei as drogas pesadas, casei com Sílvia e me
coloquei à disposição da vida para que ela me conduzisse pelo caminho que lhe
aprouvesse.
Tenho
de interromper minha confidência aqui. Por ora só quero, e posso, adiantar que
a vida efetivamente me tomou pelo braço e tem me puxado, ora a contragosto, ora
de olhos deliciosamente fechados, em direções insuspeitas.
Mas
(?) tenho presente que um dia lá trás fui meu próprio senhor. Não há como não
fantasiar o que eu poderia ter sido e não fui. A única certeza é que estaria
morto, sem considerar o mérito da questão.
Chego
aqui com a impressão de que estou me mostrando espetacularmente confuso.
Provavelmente não demonstrei nada do que pretendia demonstrar. Acho que não
queria demonstrar nada. Aos meus desafetos, prato cheio. Pior para eles, sempre
à espreita duma boa presa mas eternamente esfomeados.
Duvide.
Duvide dos seus pensamentos, das suas fantasias, dos seus sonhos. Duvide do
instinto do cão que se acha no dever de perseguir o gato. Do que lhe dizem. Das
suas dúvidas. Duvide de mim, duvide de você.
Duvide
do seu caminho, duvide que possam haver caminhos. A noção de caminho é
demasiadamente física, evocadora do remoto, inacessível mundo lá de fora. Não
quero andar, seguir a lua nem o sol. Minhas ruas não estão no Googlemaps. Os
astros simplesmente transladam incônscios de suas órbitas. Se soubessem,
provavelmente se rebelariam de seu destino e provocariam a hecatombe final. Por
mim, nada contra.
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