A poesia é
impossível
o amor é mais
que impossível
a vida, a morte loucamente
impossíveis.
Orides Fontela
Jorge é um cara hábil nas intrincadas cirandas e folguedos da
administração empresarial (ou "corporativa", como querem os analfabetizados que engolem tudo que vem lá de cima sem mastigar). Implantou em suas empresas programas modernos de
controle de funcionários, de materiais, do trabalho executado, dos serviços
prestados. Orgulha-se de sua visão de longo alcance. Foi com essa habilidade
que acumulou a obscena fortuna cuja maior parte está hoje depositada numa ilha.
Seu forte é a sagacidade preditiva. Sabe se antecipar às
tendências financeiro-econômicas e aplicar antes de todos nas oportunidades
ainda camufladas pelo receio, ditador dos espíritos que se dizem prudentes. Por
isso é assunto em rodas empresariais da cidade. Ele mesmo às vezes se vê
espantado com seu dom antecipatório, parece um sexto sentido, algo meio
místico. Sente falta de não poder atribuir sua fortuna a uma dádiva divina.
Sempre misture as coisas, diz, este é meu lema — lema de quem não dá a mínima
importância a lemas.
Fareja bons negócios como o tubarão detecta sangue a léguas de
distância nas trevas do oceano. Mas ao contrário do predador marinho que dardeja
obcecado rumo à vítima inerme, fica na sua quando identifica a presa, os olhos
dissimulando olhando para outro lado. É tanto o tempo, são tantos os dias,
tantas as semanas olhando para um lado, que todos à espreita logo se vêem voltados
na mesma direção. São incapazes de resistir. Sabem que é armadilha, mas
simplesmente querem cair.
O truque sempre dá certo. O pior é que olhar na direção oposta
tampouco dá certo. Seus concorrentes inúmeras vezes tentaram ir exatamente
contra o lado a que ele aparentava rumar e todas as vezes tinham passado perto,
errando o alvo, quebrando triunfalmente a cara. É como na hora de chutar um
pênalti — você olha para um canto e o goleiro pensa, ele quer que eu pense que
ele vai chutar para o lado em que está olhando mas vai terminar chutando do
outro lado ou então ele quer que eu pense que está me enganando para chutar
exatamente do outro lado. Com Jorge é sempre assim — o goleiro
indefectivelmente adivinha o canto errado e termina agarrando pateticamente o
ar.
Muitas vezes espanta-se, pensa, puxa, é tão evidente. Por que
ninguém enxerga, só eu? Uma vez teve de conter uma compulsão a sair berrando,
cegos, cegos. Vejam, está aqui na cara de todos vocês. Mas seu instinto de
predador o impede de revelar a mecânica — algum mais espertinho que a média
poderia aprender a farejar por processo de dedução e ele jamais se perdoaria.
Ocasionalmente dá algumas dicas para certos colegas. Tudo sempre muito bem
estudado. Controla cem por cento as variáveis e sabe o que pode e o que não
pode conceder. E sempre em troca de alguma recompensa futura bem maior. Quando
ajuda alguém a ganhar dez milhões aqui hoje é porque vai lucrar cem milhões
amanhã como desdobramento dessa mesma ajuda.
Há dias que tem idéias extravagantes feito anunciar nos jornais
financeiros algo como “Empresário decide aposentar-se e planeja doar o mapa da
mina”. Por bom tempo brinca com a ideia, imaginando a cara de seus
competidores, todos acometidos por ansiosas fantasias em que ele é atropelado
por um caminhão ou afogado na piscina ou dizimado por uma overdose cavalar de
heroína. Desenvolve algumas hipóteses de doação numa espécie de teatrinho em
que cada um dos empresários rivais seria o felizardo. Ri-se ao imaginar um a um
feito marionete em suas mãos. Não há limites para o que podem fazer em troca
duma chance de lucrar milhões e principalmente de foder os concorrentes. A
maior parte iria de bel-prazer para o buraco se pudesse levar consigo todos os
outros e exterminar a raça. Não há um que não dê a própria mulher em troca dum
negócio que valha a pena. Cavalcanti daria a mulher, a mãe e a irmã. Marques
daria tudo isso e o próprio rabo. Gardini daria e faria tudo isso e ainda
comeria merda com garfo e faca em prato de porcelana. Não têm limites — estão
plenamente dispostos a roubar, matar, torturar. Até que acabam se fodendo eles
próprios.
Jorge nasceu para foder. Todos e todas. Mas é parcimonioso. E
frio. Os outros, afoitos. Não se contêm quando vêm a garganta do cordeiro à
espera da dentada. Nhoque. Tem choro não — era uma vez um alvo cordeirinho. De
repente nhoque de novo. Nhoque. O cordeiro era uma isca. Lá vai o lobo
apressado tolhido pelas presas de outro lobo mais ardiloso. A isca da isca da
isca. Assim vão para o caralho um a um. É a lei lupina. A base da pirâmide
alimentar são os cordeiros, subindo pelos lobinhos, depois os lobos médios,
depois os lobões e no cume Jorge, predador dos predadores. O vencedor que nunca
teve de negociar o próprio rabo para vencer.
Só os derrotados se deixam humilhar. Ou os que não se importam em
parecer abjetos. Ou os apaixonados, os ávidos por emoções, românticos que
passam a vida buscando satisfazer um capricho da infância. São insaciáveis. Não
sabem o que querem. Aprenderam que o poder é o caminho, o fim e o sentido da vida.
Não sabem por quê. Vivem apenas pelo instinto, confundindo-o com conveniência.
Para Jorge sentimentos não rimam com negócios. Em circunstância alguma. Com
ninguém. É o único com coragem para consumar o grande e último passo naquela
profissão de fé rumo ao domínio supremo: a solidão absoluta do poder absoluto.
Nenhum dos demais ousaria entregar-se a tamanha abnegação. Viu, um a um, os
rivais no último segundo desistir da renúncia maior que é a autoprivação do
amor. Todos sem exceção tinham executado cada rito só para recuar diante do
altar, recolhendo o rabo entre as pernas e voltando assustados para a segurança
dos entes queridos. Jorge, quando se achou no cume estufou o peito, lançou um
olhar possessivo sobre seus novos domínios. O único amor que há em seu coração
é o amor pela supremacia e capacidade de construir a própria solidão.
Ao longo dos anos que levou para se preparar Jorge investigou tudo
que pôde sobre o funcionamento do mercado, levantando casos sobre que havia
informações disponíveis e analisando cuidadosamente cada um dos participantes
envolvidos. Foi esse estudo das variáveis humanas o que mais contribuiu para
fazer dele o campeão. Não poupou tempo nem energia ou dinheiro na tarefa de
determinar os motivos que levam um empresário ao sucesso ou ao fracasso.
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