Quer
que eu responda?
Pra
escarnecer de novo?
Vamos
lá, escarneça!
Gosto
quando escarnecem de mim.
Me
dá um insight convulsivo, repelente, triunfal e frustrante, que engulo fervendo
sem açúcar.
São
estranhas as sensações de que preciso, se quero sobreviver até amanhã cedo.
Vamos!
antes que eu esqueça, perca a vontade, ache melhor não, desista, decida que dar
um tiro na cabeça seria mais conveniente.
Anotação do
escritor amigo do tal de Fred
Quando ouço Sílvia me chamar do portão da rua estou terminando um
parágrafo que reescrevi umas vinte vezes até esquecer o que estava pensando.
Desligo a máquina e vou atender.
Trouxe um presentinho, ela sorri jovial, parada na entrada do
jardim, escuto a ode à alegria longínqua tocando de outra dimensão.
Tá vendo? ela escancara o sorriso, eu tenho o poder de abrir um
sorriso nesse seu rosto sério.
Sinto minha boca se abrir voluntária num imenso sorriso e os dois
rimos.
Tome. Ela enfia a mão numa sacola de shopping que está carregando.
Baixa a cabeça pra enxergar, os cabelos lisíssimos castanhos claros deslizam
por seu rosto, só a pontinha do nariz fica de fora.
Retira um cartão grande pardo da sacola e me estende. Apanho e
olho. É um retrato feito a lápis. Sou eu olhando o horizonte com este meu rosto
sério, um retrato a lápis, meu rosto sério.
Sinto a boca abrir ainda mais, será possível? Os traços são
amadorísticos. Mas registram quase à perfeição meu arzinho/arzão introspectivo
de quem está sempre seriamente zonzo, traços amadorísticos que registram quase
à perfeição meu ar introspectivo seriamente zonzo.
Alegria, centelha de imortal chama, filha do Eliseu, ébrio de
fogo, minha celeste, teu santuário me deixa invadir, me abriga fraterna sob
essas tuas ternas, magnânimas asas.
Nesse instante me lembro vividamente do que estava pensando quando
comecei a escrever aquele parágrafo que larguei pela metade. Preciso voltar à
máquina e datilografar rápido, sei que não posso deixar o fiozinho evaporar, já
passei tantas vezes por isso, depois fica um vazio terrível. Você quer desistir
de algo que não sabe bem o que é, desistir não sabe bem de quê.
– Não estou atrapalhando, estou? — Sílvia diz, vendo que continuo
imóvel, o olhar fixo no retrato.
Está, penso, está, finjo que digo para mim mesmo, acordando dessa
letargia em que minha consciência costuma resvalar de minutos em minutos ao
longo do dia. A hipótese de dar essa resposta à pergunta dela alimenta meu
humor e sinto meu sorriso se manter. As piadas mais engraçadas são as que você
faz com você mesmo.
Claro que não! minha voz diz, claro que não. Fazendo compras?
indico a sacola pendurada na mão dela.
Uma brisa leve sopra soerguendo mechas dos cabelos lisíssimos.
Nossos sorrisos prosseguem intactos. Só então noto que Sílvia está de óculos
escuros. Enormes lentes negras a lhe cobrir totalmente os olhos.
Um milhão de pequeninos cantores de Viena entoam a ode a bordo dum
trem aberto que serpeia pelas colinas do Kilimanjaro. No fim da estrada de
ferro tem um hospital. No hospital está internado... Serei eu?
Estou indo pra praia. Vim assim de surpresa porque sei que você
não vai se programar antes. Topa?
Olho pra rua, o Miata dela está parado diante do meu portão.
Conversível. Estranho. Meio esportivo.
Tem um litro de Buchanan's e um balde de gelo no banco traseiro.
Ela ri.
Rio junto.
A excursão à praia leva algumas horas, pode levar semanas. Semanas
Assim que chegarmos vamos até as rochas do outro lado do morro?
Estamos nos instalando nos bancos do Miata conversível.
Atrás da casa na praia tem um morro não muito alto que às vezes
atravessamos pra atingir o mar do outro lado. É um lugar onírico, com ominosos
rochedos de bilhões de anos açoitados por gigantescas, tenebrosas ondas.
O carro mal dá partida me viro para trás, apanho o Buchanan's e
duas pedras de gelo, jogo dentro dum copo, fecho os olhos e sorvo, o líquido
frio me invade a boca, o esôfago, o estômago, o mundo gira.
Estava quase cancelando a viagem. Meu pai ainda está no hospital,
os médicos não descobriram a causa, os exames só ficam prontos na terça, então
pensei, por que não dar uma escapadinha pra relaxar?
Trago cheio de consciência o copo aos lábios sorridentes, outra
talagada, o uísque seca, só restam duas pedras de gelo em miniatura. Primeiros
acordes da mazurca Opus 68. O uísque é efêmero. Pedras de gelo são efêmeras.
Estou sentado numa mesa de bar entre deus e o diabo. Ambos vociferam,
aparentemente tentando decidir quem me levará. Escuto sem dar importância a
qual seria menos ruim pra minha própria pele.
Quando chegamos à casa estou bêbado, não tenho ideia de que lugar
é este. Noturno em dó maior, apenas três acordes tocam, noturno em mi maior.
Deus, meu garoto, põe o sol maior agora e sou teu.
Venha pra cama, ela me puxa pelo braço.Você precisa dormir.
Quero ir até as rochas, reclamo. Vir à praia sem ir até as rochas
não é vir à praia.
Paramos no alto do rochedo maior. Nas sombras do crepúsculo o
azulão do mar reverbera num lusco-fusco intrigante, as ondas lá em baixo vêm
deslizando silentes até estufarem como que sopradas por pesadelos, desabando
espalhafatosas sobre as pedras.
Algo quer me arrastar pra baixo. Tento livrar o braço, Sílvia não
deixa, segura mais forte.
Se você cair... ela suplica.
A disputa por mim prossegue aos berros. Estou tranquilo.
Estranhamente. Será a paz que antecede a morte?
Olho para ela, tenho certeza de que meu olhar está pesado de
agradecimento. Se todos os ventiladores do mundo fossem ligados no mesmo
instante pra criar a última tempestade. A entrada do hospital está apinhada de
gente, custo a atravessar a multidão. Quando me vejo dentro noto minha camisa
rasgada.
Ainda bem que você veio. Meu pai não passa desta noite.
O volume do noturno em sol maior ocupa o vácuo que toma conta do
saguão de entrada.
Os últimos três dias foram cruéis. Finalmente está acabando.
Mesmo sob as notas doloridas do noturno ela murmura uma canção a
que ele parece dormir sem sobressaltos. De minha parte eu poderia dizer que só
me resta observar. Não digo. Me limito a erguer o copo, faço um brinde ao
diabo.
Olha o retrato que desenhei. Sílvia mostra um cartão.
Hoje é segunda-feira, logo tudo estará terminado.
Suspiro forte, solto os braços. O macabro mar pisca seus imensos
olhos me provocando. Escritores de antanho se intimidavam com a página em
branco. Duma coisa tenho certeza: Schiller não conseguia molhar o bico de pena
no tinteiro com rapidez suficiente pra registrar o jogo de xadrez alegre
angustiado que disputava atônito e mudo consigo mesmo. Deus, obrigado. Sou todo
teu, nada mais trago em mim de ambíguo ou irresoluto.
Quando acordar amanhã a primeira coisa que faço é acabar este
maldito, este bendito parágrafo. Amanhã começarei uma nova vida, sei. A mão
dela treme, um estertor talvez. No retrato na mão dela uma tempestade varre
todas as coisas do mundo, as ondas lambem os nossos pés.
Não. Não é nada disso. Desisto. Aperto o botão e desligo a máquina
antes de ceder à tentação de recomeçar e reescrever e voltar e voltar. Apanho
minha maçã que sempre deixo de reserva no canto da mesa, meu único consolo
neste vácuo em que flutuo e me perco. Mordo, dentada possante como as
necessárias pra desvirginar a alva tez das maçãs, a casca crepita sob a força
dos dentes, o sumo invade minha boca e me anestesia o paladar, meu refúgio
neste epílogo a que vim me arrastando.
Alguns pontos de esperança bruxuleiam na página e se apagam num
ultimato de que não sei aproveitar as chances que a vida teimosamente me
oferece. Ela estava tão jovial, tão jovial, que não me ocorre outra palavra. A
alegria tem esse nome porque é fugaz. Telefonei, deixei recado na secretária.
Ela não respondeu. Faz mais de uma semana. Só me resta o noturno em mi bemol
maior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário