Amorokê na vila - Capítulo 025


Devemos ler como se o texto que temos ante nossos olhos tivesse significado.
George Steiner

Para gerenciar meu método de trabalho estabeleci um procedimento operacional como parte de um sistema global. Consiste tal sistema de três categorias destinadas a traduzir, mesmo sem a devida precisão, meus três principais estados de espírito.
São elas: categorias primeira, segunda e terceira.

Categoria primeira
A categoria primeira geralmente resulta numa lâmina com a pontinha rósea ou, dependendo da temperatura e da umidade relativa do ar, avermelhada. Não se produzem lacerações quando a lâmina é removida, pois nessa categoria o ato é perpetrado com cordura. Se dormimos bem na noite anterior pode ocorrer um inchaço em torno da incisão mas nada muito severo. Nessa categoria tanto a epiderme quanto a derme vão pro saco. Como já expliquei a Chegadessaudade epiderme é a camada superior da pele; derme, a segunda. Esta jamais é ultrapassada. Em geral esse tipo de abordagem requer de sessenta a noventa aplicações, podendo durar até cinco horas. Uma vez a espera se prolongou por doze enquanto um cliente não se decidia. Eu olhava meio incrédulo o rapaz cobertinho de carmim. Lá pelas tantas meu peito começou a ter falta de ar. Perguntei, tu tá tomando antibiótico, disgramado? Ele disse não, é o meu santo que me protege. A peixeirinha atravessou primeiro o baço, e aí? Ele só virou os olhinhos. A peixeirinha sumiu a lâmina entre as costelas na altura do ventrículo inferior, tomando cuidado pra não entortar e quebrar. Ia perguntar se ele tinha comprado o antibiótico com receita, não deu tempo. O próximo que fizesse aquilo ia deixar viver, prometi. E não tardou a ocorrer, conforme o previsto. Larguei o cliente no meio dum matagal em São Roque e liguei pra emergência dum hospital. Agora espero o tempo passar na certeza de que mais dia menos dia hei de verificar qual é o estado duma pessoa literalmente coberta de cicatrizes.

Categoria segunda
Esta categoria engloba a epiderme, a derme e mais um tiquinho. Não queira saber que porra de tiquinho é esse, pois nem eu sei. Isso não quer dizer que seja uma medida discricionária. Como já explicamos, nosso instrumento é preciso. Só entra até onde mandamos. Embora os parâmetros acima sejam importantes, o que interessa são os sintomas. Afinal se tem uma coisa de que me gabo é ter conseguido seguir minha vocação. Que é que tu vê os olhos olhando em volta? Um monte de nego frustrado fazendo na marra o que não gosta. A maioria leva jeito mesmo é pra dar o rabo e deixar que o mundo se foda de segunda a segunda, das seis às 23 horas. Mas esses parasitas não contam. Existir só pra ter prazer não dá certo. Uma, é antiético; três, cansa, e quando cansa neguinho faz o quê? e, nove, é impossível, e se é impossível é impossível. Nesta segunda categoria a dor é tão intensa quanto na primeira, só que mais demorada. Certa vez, estava já preparado para executar um cliente, quando ele implorou, pelamordedeus, não me mata, tenho três filhos e sou médico. E daí? perguntei. Eis uma merda que me intriga, qual seja: essa mania de entregar o currículo na hora do sacrifício. É não-me-mata-que-tenho-mulher-e-filhos pra cá, não-me-mata-sou-gay-mas-tenho-filhos pra lá. Doutor e não tem vergonha de jogar mais miseráveis neste vale de lágrimas? pergunto. Ele não respondeu. Repetimos a pergunta. Ele diz que não sabia a resposta. Mas na hora de comer a mãe dos patetinhas tu não se preocupou o que seria deles, preocupou? Ele torna a ficar como já estava, ou seja, mudo. Mas, aproveitando esse teu expertise, doutor, diga, por favor me diga, e agora vamos exigir uma resposta: por que o cabra demora mais a sentir a dor com um talho fundo do que um raso? Por um instante o médico arregala ainda mais os olhinhos castanho-claros, tentando entender aonde eu quero chegar. É uma pergunta legítima, eu digo. Tô de fato a fim de saber. Por que demora mais quando o corte é fundo do que raso? Vejo uma sombrinha de vaidade passar na fuça dele. Não perde a pose de técnico nem na hora do espeto. É que as respostas elétricas, ele começa, são transmitidas ao cér... craaaaaqueeee faz a peixeirinha, primeiro penetrando até o cabo, depois dançando na direção dos sete pontos cardeais. Pra arejar. Se tem uma coisa errada em nós seres humanos é a insuficiência de aberturas de refrigeração. Principalmente na cabeça, por razões óbvias. E bem que podíamos nascer c'uns portaobjetos, que adaptaríamos à nossa conveniência. Bem, voltando às categorias, também neste caso há inchaço, só que a lâmina sai num carmim mais aveludado. E tem outra diferença significativa: a camada de líquido é coberta por uma espuma borbulhante. Enquanto as borbulhas ficam lá borbulhando, uns vinte segundos, eu caio absorto ante o espetáculo da natureza. Fenômenos físicos sempre me encantam. Tu pode fazer alguma ressalva quanto ao termo carmim. Antes, de minha parte, eu também preferia carmesim, mais poético. Mas se tem uma coisa que nos deixa puto é poesia. Pudesse matava todos os poetas desta bosta de planeta. Já matei uns três ou quinze. São os mais decepcionantes. O primeiro, no momento de sangrar, eu esperava senão um soneto completo respeitando a métrica e as rimas pulando de dois em dois ou de quatro em quatro, uma simples quadrinha que fosse, daqueles versos sem forma rígida que brotam das mais abissais profundezas d’alma para cunhar definitivamente esse beco sem saída de desespero em que pastamos. Aquele dia tô zanzando pelo Brás, uma daquelas feiras pandemônicas que me dão saudade do Oriente-Médio, o único lugar em que me sinto de fato brasileiro, quando avisto um poeta na banca dum camelô os olhos olhando encanado um carrinho a pilha do Paraguai. Minha alma saponácea saca que é poeta pelos olhos vidrados que só os poetas têm. Vamos lá, rodeio solerte, puxo conversa, até que perguntamos se ele quer uma enrabada. Essas coisas, você sabe, tem de perguntar na lata. Desarma o nego e derruba as barricadas do pudor. Não sei se você sabe também, todo poeta é bicha. Carinha pode preservar o rabicó até morrer, esconder até da mulher, esconder até dele mesmo, mas que todo poeta é bicha não temos dúvida. Ele levanta os olhos do carrinho chino-paraguaio e nos olha esperançoso, pensando, hoje é meu dia. Pisco os dois olhos, ele pisca de volta. Ele ergue as sobrancelhas, maroto, querendo saber, onde? Os olhos olham em volta, lá longe vejo um daqueles pontilhões que ensombrecem o céu do Brás. Embaixo daquele ali, digo, indicando com a cabeça o mais próximo. Que tu acha? Topo, ele larga o carrinho de volta na banca. Não vai levar, o camelô quer saber. Hoje não. Tomamos o rumo do pontilhão. No caminho pedimos, recita um versinho aí nessa tua secreta nostalgia. Como sabe que sou poeta, ele se admira. Sei, oras. Recita aí. Assim de supetão eu não sei, ele enrola. Fico desapontado. Além de enrustido, poeta sem capacidade de improvisação. Vai ver, só verseja dentro duma biblioteca. Poeta no duro faz poesia de supetão, sem supetão, de dia, de noite, na fila do açougue ou a caminho de dar o cu. Quando nos enfiamos num canto escuro debaixo da ponte, acuo o carinha na quina da parede e dou o primeiro talho, categoria primeira, na testa. Deve ser suficiente, pensamos, pois se o rapaz já sai por aí cantando mavioso qualquer aurorazinha de merda, que beleza não há de brotar desses lábios chupa-rola agora que tá cara a cara com a mardita? Aguardo. Nada. Só aquele assombro, terror, palidez leitosa, etc. Por ser caso especial, mantenho o nível de paciência em quatro (usando um truquezinho que aprendemos com Chegadessaudade e que talvez elabore alhures) e espero de novo. Nada. O leite que havia na palidez vai virando coalhada e a boca suga-pinto enrugando cada vez mais apertada. Outro golpezinho, no antebraço direito. Mais leite e mais aperto. Então vemos nos olhos dele o que os olhos vêem nos olhos de todos: The Emptiness. Da lira desse orfeu não sai mais cantiga pr’eurídice, sentencio e craaaaque creeeeque. Chegadessaudade vive dizendo que certa vez teve sorte e um dos seus fregueses poetas cantou, um verso que, segundo Chegadessaudade, dizia assim:

Tá confirmado
a vida é um peneirão cheio de luzinhas
não fique tenso
só os grã-finos passam

Não acredito muito nessa versão. Chegadessaudade deve ter tirado d’algum goethe por aí. O desgraçado sabe alemão e não perde a chance de me esnobar. Deu pra ler Der Damon und Fraulein Prym, vê se pode.


Categoria terceira
Um talho seco e fundo na carótida.


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