Devemos ler como se
o texto que temos ante nossos olhos tivesse significado.
George Steiner
Para gerenciar meu método de trabalho estabeleci
um procedimento operacional como parte de um sistema global. Consiste tal
sistema de três categorias destinadas a traduzir, mesmo sem a devida precisão,
meus três principais estados de espírito.
São elas: categorias primeira, segunda e
terceira.
Categoria primeira
A categoria primeira geralmente resulta numa
lâmina com a pontinha rósea ou, dependendo da temperatura e da umidade relativa
do ar, avermelhada. Não se produzem lacerações quando a lâmina é removida, pois
nessa categoria o ato é perpetrado com cordura. Se dormimos bem na noite
anterior pode ocorrer um inchaço em torno da incisão mas nada muito severo.
Nessa categoria tanto a epiderme quanto a derme vão pro saco. Como já expliquei
a Chegadessaudade epiderme é a camada superior da pele; derme, a segunda. Esta
jamais é ultrapassada. Em geral esse tipo de abordagem requer de sessenta a
noventa aplicações, podendo durar até cinco horas. Uma vez a espera se
prolongou por doze enquanto um cliente não se decidia. Eu olhava meio incrédulo
o rapaz cobertinho de carmim. Lá pelas tantas meu peito começou a ter falta de
ar. Perguntei, tu tá tomando antibiótico, disgramado? Ele disse não, é o meu
santo que me protege. A peixeirinha atravessou primeiro o baço, e aí? Ele só
virou os olhinhos. A peixeirinha sumiu a lâmina entre as costelas na altura do
ventrículo inferior, tomando cuidado pra não entortar e quebrar. Ia perguntar
se ele tinha comprado o antibiótico com receita, não deu tempo. O próximo que
fizesse aquilo ia deixar viver, prometi. E não tardou a ocorrer, conforme o
previsto. Larguei o cliente no meio dum matagal em São Roque e liguei pra
emergência dum hospital. Agora espero o tempo passar na certeza de que mais dia
menos dia hei de verificar qual é o estado duma pessoa literalmente coberta de
cicatrizes.
Categoria segunda
Esta categoria engloba a epiderme, a derme e mais
um tiquinho. Não queira saber que porra de tiquinho é esse, pois nem eu sei.
Isso não quer dizer que seja uma medida discricionária. Como já explicamos,
nosso instrumento é preciso. Só entra até onde mandamos. Embora os parâmetros
acima sejam importantes, o que interessa são os sintomas. Afinal se tem uma
coisa de que me gabo é ter conseguido seguir minha vocação. Que é que tu vê os
olhos olhando em volta? Um monte de nego frustrado fazendo na marra o que não
gosta. A maioria leva jeito mesmo é pra dar o rabo e deixar que o mundo se foda
de segunda a segunda, das seis às 23 horas. Mas esses parasitas não contam.
Existir só pra ter prazer não dá certo. Uma, é antiético; três, cansa, e quando
cansa neguinho faz o quê? e, nove, é impossível, e se é impossível é
impossível. Nesta segunda categoria a dor é tão intensa quanto na primeira, só
que mais demorada. Certa vez, estava já preparado para executar um cliente,
quando ele implorou, pelamordedeus, não me mata, tenho três filhos e sou
médico. E daí? perguntei. Eis uma merda que me intriga, qual seja: essa mania
de entregar o currículo na hora do sacrifício. É
não-me-mata-que-tenho-mulher-e-filhos pra cá,
não-me-mata-sou-gay-mas-tenho-filhos pra lá. Doutor e não tem vergonha de jogar
mais miseráveis neste vale de lágrimas? pergunto. Ele não respondeu. Repetimos
a pergunta. Ele diz que não sabia a resposta. Mas na hora de comer a mãe dos
patetinhas tu não se preocupou o que seria deles, preocupou? Ele torna a ficar
como já estava, ou seja, mudo. Mas, aproveitando esse teu expertise, doutor, diga,
por favor me diga, e agora vamos exigir uma resposta: por que o cabra demora
mais a sentir a dor com um talho fundo do que um raso? Por um instante o médico
arregala ainda mais os olhinhos castanho-claros, tentando entender aonde eu
quero chegar. É uma pergunta legítima, eu digo. Tô de fato a fim de saber. Por
que demora mais quando o corte é fundo do que raso? Vejo uma sombrinha de
vaidade passar na fuça dele. Não perde a pose de técnico nem na hora do espeto.
É que as respostas elétricas, ele começa, são transmitidas ao cér...
craaaaaqueeee faz a peixeirinha, primeiro penetrando até o cabo, depois
dançando na direção dos sete pontos cardeais. Pra arejar. Se tem uma coisa
errada em nós seres humanos é a insuficiência de aberturas de refrigeração. Principalmente
na cabeça, por razões óbvias. E bem que podíamos nascer c'uns portaobjetos, que
adaptaríamos à nossa conveniência. Bem, voltando às categorias, também neste
caso há inchaço, só que a lâmina sai num carmim mais aveludado. E tem outra
diferença significativa: a camada de líquido é coberta por uma espuma
borbulhante. Enquanto as borbulhas ficam lá borbulhando, uns vinte segundos, eu
caio absorto ante o espetáculo da natureza. Fenômenos físicos sempre me
encantam. Tu pode fazer alguma ressalva quanto ao termo carmim. Antes, de minha
parte, eu também preferia carmesim, mais poético. Mas se tem uma coisa que nos
deixa puto é poesia. Pudesse matava todos os poetas desta bosta de planeta. Já
matei uns três ou quinze. São os mais decepcionantes. O primeiro, no momento de
sangrar, eu esperava senão um soneto completo respeitando a métrica e as rimas
pulando de dois em dois ou de quatro em quatro, uma simples quadrinha que
fosse, daqueles versos sem forma rígida que brotam das mais abissais
profundezas d’alma para cunhar definitivamente esse beco sem saída de desespero
em que pastamos. Aquele dia tô zanzando pelo Brás, uma daquelas feiras
pandemônicas que me dão saudade do Oriente-Médio, o único lugar em que me sinto
de fato brasileiro, quando avisto um poeta na banca dum camelô os olhos olhando
encanado um carrinho a pilha do Paraguai. Minha alma saponácea saca que é poeta
pelos olhos vidrados que só os poetas têm. Vamos lá, rodeio solerte, puxo
conversa, até que perguntamos se ele quer uma enrabada. Essas coisas, você
sabe, tem de perguntar na lata. Desarma o nego e derruba as barricadas do
pudor. Não sei se você sabe também, todo poeta é bicha. Carinha pode preservar
o rabicó até morrer, esconder até da mulher, esconder até dele mesmo, mas que
todo poeta é bicha não temos dúvida. Ele levanta os olhos do carrinho
chino-paraguaio e nos olha esperançoso, pensando, hoje é meu dia. Pisco os dois
olhos, ele pisca de volta. Ele ergue as sobrancelhas, maroto, querendo saber,
onde? Os olhos olham em volta, lá longe vejo um daqueles pontilhões que
ensombrecem o céu do Brás. Embaixo daquele ali, digo, indicando com a cabeça o
mais próximo. Que tu acha? Topo, ele larga o carrinho de volta na banca. Não
vai levar, o camelô quer saber. Hoje não. Tomamos o rumo do pontilhão. No caminho
pedimos, recita um versinho aí nessa tua secreta nostalgia. Como sabe que sou
poeta, ele se admira. Sei, oras. Recita aí. Assim de supetão eu não sei, ele
enrola. Fico desapontado. Além de enrustido, poeta sem capacidade de
improvisação. Vai ver, só verseja dentro duma biblioteca. Poeta no duro faz
poesia de supetão, sem supetão, de dia, de noite, na fila do açougue ou a
caminho de dar o cu. Quando nos enfiamos num canto escuro debaixo da ponte,
acuo o carinha na quina da parede e dou o primeiro talho, categoria primeira,
na testa. Deve ser suficiente, pensamos, pois se o rapaz já sai por aí cantando
mavioso qualquer aurorazinha de merda, que beleza não há de brotar desses
lábios chupa-rola agora que tá cara a cara com a mardita? Aguardo. Nada. Só aquele
assombro, terror, palidez leitosa, etc. Por ser caso especial, mantenho o nível
de paciência em quatro (usando um truquezinho que aprendemos com
Chegadessaudade e que talvez elabore alhures) e espero de novo. Nada. O leite
que havia na palidez vai virando coalhada e a boca suga-pinto enrugando cada
vez mais apertada. Outro golpezinho, no antebraço direito. Mais leite e mais
aperto. Então vemos nos olhos dele o que os olhos vêem nos olhos de todos: The
Emptiness. Da lira desse orfeu não sai mais cantiga pr’eurídice, sentencio e
craaaaque creeeeque. Chegadessaudade vive dizendo que certa vez teve sorte e um
dos seus fregueses poetas cantou, um verso que, segundo Chegadessaudade, dizia
assim:
Tá
confirmado
a vida é um
peneirão cheio de luzinhas
não fique
tenso
só os
grã-finos passam
Não acredito muito nessa versão. Chegadessaudade
deve ter tirado d’algum goethe por aí. O desgraçado sabe alemão e não perde a
chance de me esnobar. Deu pra ler Der Damon und Fraulein Prym, vê
se pode.
Categoria terceira
Um talho seco e fundo na carótida.
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