Acabei hoje o
sabonete cujo uso iniciaste aquando o teu último banho cá em casa.
João Miguel Fernandes Jorge
A esquizofrênica que recebia os loucos no jardim
do sanatório tinha o olhar destrambelhado da mais insondável introspecção,
quando nos via exclamava um oi! desolado num fiozinho de falsete. Pela sua cara
passavam sombras hindus, ciganas, lavadeiras, anjos. Nunca vi tanta piedade
como naquele rosto caleidoscópico dominado por olhões cintilando um
olhar-abismo. Alguém com sensibilidade óptica extra-humana qual Picasso saberia
retratar, talvez. Eu me sentia algo reconfortado — no começo me assustei com a
força da identificação. A esquizofrênica ainda está lá. Hoje penso,
provavelmente enganado — de que me adianta saber que o que penso está errado?
—, qual a fotografia de Lasch, pela distância do tempo e pelas miríades de
fantasias que urdi enquanto assistia as perenes agulhas de crochê tecendo
mecanicamente uma inesgotável mina de toalhinhas para os criados-mudos de toda
a família nas mãos surpreendentemente destras de minha mãe, que me levava às
sessões no Dekavê azul-cobalto meia-meia roncando seu motorzinho germânico
pelos lindos campos atrás do Rudge Ramos que ela tomava de atalho para não dar
a volta pela avenida, economizando com isso uns quinze segundos, economia
cronológica que, penso hoje, ela foi cuidadosamente adicionando a uma grande
lista de momentos poupados desde o dia em que nasceu, decidida que era a
alimentar a obsessão com que se devotou a ganhar tempo, ganhos que ia juntando
impaciente num depósito cronológico em sua cabeça, nos levando a cruzar aquele
campo atrás da via Anchieta como se fôssemos dois pés de alface perecíveis, as
fantasias que urdi com suas agulhas de crochê dançavam desvairadas em torno de
que talvez tivesse finalmente encontrado alguém capaz de me entender naquela
pequena personificação esquizofrênica da piedade. Tal como entendera o lobo me
aconchegando em seu ninho num buraco qualquer perdido nas desoladas estepes dos
arredores de Sampa. Na minha/nossa solidão isso era tudo que me interessava.
Não, você não sabe, gente como eu tem essa
necessidade incomensurável de compreensão. São tantas as coisas que você não
sabe e que preciso te contar. Nesse seu mundinho mórbido de bem-estar a
qualquer custo, bem-estar terapêutico, você não sabe nadica. Por exemplo, não
sabe que no olhar duma esquizofrênica internada num sanatório ao lado da via
Anchieta pode haver comiseração infinitamente fraterna por outro ser humano,
capaz de aliviar pelo menos umas horas a dor descomunal desse outro maluco pelo
simples cruzar acidental dos olhares de ambos enquanto seguem em seus passinhos
decididos rumo ao desespero. Para meu espanto então — e ainda hoje — nossos
olhares não provocaram faíscas de hostilidade. Sempre me precavi contra a
aversão quase permanente singrando olhares alheios, talvez refletindo a minha
própria, mas isso nunca serei capaz de saber com precisão, e é assim, e isso você sabe, que vou
desbravando meu mundinho solitário cercado de arame farpado imaginário
fundamentado ou não, sitiado por gente decidida a me arrancar o pouco que tenho
de lucidez só para ver até onde pode alcançar minha resistência à loucura que,
segundo essa gente convencionou pensar, cultivo por diletantismo qual flor
bizarra. Você também não sabe que no fundo de muitas noites inundadas de
desespero e solidão, esse olhar seria o tênue fiozinho que manteria essa
loucura domada o bastante para não me dominar por completo, apenas latejando
para que eu pudesse prosseguir inacreditavelmente vivo. Por maior força que ele
fizesse para romper a porra do fio em suas tentativas mais e mais frenéticas de
se libertar duma vez por todas. Tem outras, muitas outras coisas que preciso te
dizer. Espere, vou fazer uma pausa, tentar chorar. Sou incapaz. Esse demônio é
tão fugidio. Como curte esse esconde-esconde circular. Não de mim, que de mim
ele não escapa. De você. E por você. É por você que ele brinca. Esse meu terno
demônio. Por que o tolero? você talvez se pergunte. Eis o tipo de perguntas que
você faz. É tudo tão simples nessa sua cabecinha pragmática tomada de cálculos
matemático-sentimentais. Sei por quê. Só que não vou responder. Não vale a
pena. Tudo vale a pena, nada vale a pena. Okay, pode achar que não passa de
tapeação. Nunca neguei que sou um embusteiro. A semana de 22 passou faz tempo.
Já li Dostoievski.
Não pense que foi por me negar a ser adulto que
passei pelas sessões de choque. Foi, como disse, pelas ondas. E, fantasmas, que
não tenho forças para acordar a esta hora da noite. Eles dormem, e não sei de
que é capaz um fantasma que tem o sono interrompido. (Embora eu seja, modéstia
à parte, perito em assuntos fantasmagóricos.) E, okay, fantasma, além de ser clichê,
empobrece. Mas que outra palavra eu daria? Você tem alguma ideia? Fantasma
resume com relativa precisão. Não vamos proscrever só porque está batido.
Monstro resumiria melhor. Mas não quero monstro. Monstro me dá um desalento que
simplesmente não tenho como manter. E monstro, ao contrário de fantasma, não
dorme. Apenas finge quê. E é mau, ao passo que nem todo fantasma é
necessariamente. Monstro é mau como você não ousa imaginar. E impiedoso.
Pesadelo de carrascos nazistas. Torturador de torturadores do Doi-Codi.
Carniceiro das bestas do Filinto. Shhhhhh, fale baixinho. Está se remexendo.
Espere. Há mais de um. Encostados uns nos outros, admira que convivam. Pensei
que não se tolerassem. Embora monstruosos. Não porque uns sejam, ou possam ser,
mais que os outros. Simplesmente por serem. Você talvez se pergunte de que
serve saber isso. Para mim é de importância crítica. Vou até confessar: saber
isso foi o que me salvou até aqui. Deu-se um milagre, não sei exatamente
quando, mas deu-se. De repente me vi traquejado na lida. Era como se tivesse
feito um curso, entende? Claro, seria impossível. Afinal eram os meus monstros, e não haveria no mundo
professor que pudesse aprofundar meu conhecimento sobre eles além das lições
que já aprendera. Minha primeira lição de autodidata foi que devo deixá-los em
paz. Sou um cara muito pouco instintivo, você já deve ter percebido, chego a
ser ingênuo, bobalhão mesmo, mas isso, instintivamente, aprendi. E aprendi no
duro, não é uma reles informação como aquelas que você adquire na faculdade de
pedagogia. Até incorporei, como dizem por aí psicanalhas obfuscados em seus
consultoriozinhos em cores pastéis, divã combinando com o carpete e os quadros
comprados nas Casas Bahia. Passou a ser o meu parâmetro. Você tem parâmetros,
não tem? Eu também. Sou o feliz portador de um inteiramente meu, forrado em
couro, escritura registrada em cartório, amaciado pelo uso. É a minha única
verdade no meu templo da empulhação. Tinha um porém, porém. Minha mãe e meu pai
um dia decidiram que eu precisava duma boa chacoalhada. Não
estava indo bem na escola. Não estava indo bem em casa. Não estava indo bem em
nenhum lugar. Sobretudo depois que raspei a cabeça e as sobrancelhas e pintei
as paredes do meu quarto de preto e pus uma cortina preta na janela e passava
semanas trancado ouvindo Sexy Sadie à Charles Manson no último
volume e garatujando uma montanha de rabiscos que nunca mais consegui decifrar.
What have you done, tudo que você precisa é uma chacoalhada. E, para chacoalhar
de verdade, nada melhor que uns bons choques no meio do rabo. Você entende,
estou rodeando. Me aproximo em círculos. Você entende, não entende? Tudo isso
está tão cristalinamente claro. A primeira coisa a fazer é perder o medo. E a
última — a última coisa a fazer é perder o medo. Pois é o mais difícil. Como
todo o resto nessa nossa vida de vermes, falar é fácil. Mas primeiro
preciso pensar neles. Que não sou capaz de fazer por mais de
dois segundos. Doi tanto quanto no momento em que me levantava da maca e, pondo
os pés no chão, um relâmpago explodia dentro do meu cérebro. Quem sabe ainda
efeito retardado da eletricidade que passara por mim. Pena que o doutor não
tivesse celular. Uma das imagens que eu queria eternizar para a posteridade
esvaziada por esta medonha era digital era a minha cara retorcida sob a
amperagem redentora. A do médico, a cara, lembro vagamente. Inexpressiva ao
decepcionante. Como em geral são as caras. Essa humanidade condenada a ganhar o
pão de cada dia. Ele mal me recebia numa saleta desoladamente burocrática, já
me deitava na maca. Antes que eu me desse conta, fazendo uma perguntinha inócua
qualquer, “ah! quer dizer que você recebe muitos amigos em casa?”, recebo,
respondia, next minute sentindo a agulha na veia do braço para ser inundado de
escuridão. A escuridão me invadia, lembro, de baixo. A invasora. Depois
daquilo, sempre que a escuridão vem, vem de baixo. Que seja o contrário do
percurso natural da luz é apenas coincidência. Quando acordava, via minha mãe e
estava burocraticamente lavado dos meus cacarecos internos. Qualquer dia, já me
prometi, qualquer dia volto ao sanatório, peço para ver o prontuário. Faz uns
seis meses, passei lá como quem não quer nada, o prédio pelo menos ainda
existe. Consegui a proeza de tomar aquele rumo fingindo que na verdade estava
indo para outro lugar. Não sei se você consegue fazer isso. Eu consigo. Isso e
outras maluquices. Malucas só aparentemente. Malucas para você e esse seu
mundinho autopreservacionista feito de bom-senso, saber o que é melhor para a
sua própria pele, bem-estar mais que tudo, não levar trabalho pra casa, evitar
gordura trans, andar meia hora por dia, horários, compromissos, cervejinha que
ninguém é de ferro, casa na praia, amante no escritório, corno no meio da
testa, cagaço de cair nas mãos dum mano na quebrada da noite, delírios
inconfessáveis com as menininhas e os garotões da novela. Pois é, existem
alguns misteriozinhos que às vezes rondam nosso conto de fadas. Que, por
pequenos, são sinistros. E, olha, vou te dizer uma coisa, que só amigo do peito
diz: tua hora vai chegar, cedo ou tarde. Espero, sinceramente, que seja o mais
tarde possível. Para que você possa aproveitar ao máximo tua jornada virtual.
Vai, sim. Talvez numa hora dessas seja importante ter desenvolvido alguns
desses truques aparentemente imprestáveis que desenvolvi em meu mundinho de
outsider. Ou quem sabe seja mera questão de ter um mínimo de honestidade. Você
sabe, admitir que você tem, digamos, certos probleminhas. Que a rosa não é um
mar de mundos. Engraçado como hoje se toma de barato que tudo tem de ser
maravilhoso e todos têm de ser lindos, ricos e felizes. Só porque socam isso na
tua cabeça noite e dia na tevê? Vê se toma vergonha nessa tua cara.
Faz uns seis meses, passei lá. Kartoffel. Tinha
de acontecer. Uma hora ou outra acabo voltando aos locais onde minha vida
sofreu um turning-point. Vou enumerar, se me permite: cada escola onde estudei,
cada rua onde brinquei, um ou outro beco sombrio que por alguma razão me
fascinou, o sanatório, a Praia Grande, certos pontos de Sanca onde engoli dores
aterradoras, outros de Sampa idem, meu quarto. Com o sanatório, seria cedo ou
tarde. Até que demorei demais para os meus próprios padrões. Sim, os tenho.
Afinal sobrevivi até agora, não sobrevivi? Teria sido impossível sem padrões
mínimos. Eis outra coisa que sei. Não tinha me dado conta, sou um cara
sapiente. Às vezes, até sábio. Devo estar fazendo algo errado. Aprendi cedo a
evitar o caminho manjado alheio. Tenho essa habilidade nata de sacar a
preferência da maioria. Saco e automaticamente prefiro outra coisa. Se não
existir, forjo. Sempre fiz isso, sempre farei. Comigo não tem essa de ter
precaução, saber o que é bom para a tosse, comportamentos vindos diretamente da
linha de montagem de onde saem os bocós reluzentes. Aqui pertinho de casa tem
um parque onde vou caminhar quando me dá na telha de vidro. Bem no meio do
parque há uma grande praça, no meio desta, uma fonte. A praça é rodeada por uma
longa rua asfaltada. O parque tem também várias outras opções para quem curte
caminhar, veredas por meio duma bela mata, passagens mais recônditas aqui e
ali, caminhos à margem de lagos, o escambau. Que é que as mulas
ortega-y-gasseanas pegam e fazem? Bidu. As mulas desembestam pela rua asfaltada
em torno da grande praça central e não saem dali nem a bala, não lhes passa
pela cachola que vez ou outra poderiam alternar o caminho, experimentar,
explorar, se limitam a dar obsessivamente voltas e mais voltas num circuito
tirano tal como aqueles turcos ensandecidos andando em torno da coluna do asilo
no Expresso da Meia-Noite.
Se minha vida fosse um filme, eu seria o carinha que vai contra. No parque,
sou. As mulas me olham espantadas, que é que esse espírito-de-porco tá fazendo?
Tem dia, minha diversão é passear no parque e subverter a ordem do mulódromo.
Passei uns
meses internado num sanatório. Dezoito anos, não sabia como retomar o que
chamam saúde mental, me recusava a enlouquecer. Infância e adolescência de
relativa lucidez, equivalentes a cem anos de loucura. Não cometia insanidades.
Não dizia bobagens. Não blasfemava. Não era violento. Maníaco, mas brando.
Um dia tive aquele ataque
de nervos e quase destruí a casa. Dia dos meus anos. Coleguinhas arrebanhados
em torno do lobo, digo, bolo. Tios me golpeando com olhares de severa censura.
Quando olhei o escuro em volta da luz das duas velinhas, vi as coisas
perigosamente calmas. Minha família não era suficientemente infeliz.
Não esqueço o rosto do meu
pai quando vieram me buscar, os gorilas me dominando, a camisa-de-força, a
injeção, arrastado para fora.
Me levaram numa ambulância.
Me deram uns choques.
Podiam ter me trancado no
quarto. Muitas famílias fazem isso com seus filhos.
Trancaram, no aniversário,
antes que eu tivesse tempo de virar a mesa com o bolo e os copos de guaraná
Antártica. Derrubei a porta a murros, gritando além do suportável. Os vizinhos
chamaram a polícia.
O mundo gemia. Eu via todos
fingindo estoicamente que não escutavam. Eu não sei fingir. Enlouquecia nas
noites.
Meus pais moravam
separados. Minha mãe usava aquele lenço vermelho no pescoço. Meu pai, aquele
seu chapéu de caipira.
Éramos pobres, sempre
fomos. Gente inculta. Tive a chance de me sofisticar.
Por uns tempos me orgulhei
da minha estadia num manicômio.
Ficava horas sentado
naquele jardim olhando os loucos naufragando em si mesmos sem poder fugir à
beira do suicídio, a moça de tetas de jaca dia após dia vinha me
perguntar já sarou? já sarou? toma este remédio que vai te fazer bem,
estendendo um copo com sangue de sua menstruação, eu ria, inibido, até que um
dia aceitei, o sangue resfriando minha língua, descendo pelo esôfago,
circulando no meu cérebro em negativo se misturando aos meus sonhos, viajando
pelos vasos em que trafegam as naves de todas as falas imanifestas, irrigando
meu útero, rimos, ela bebeu também, agora sou tua mulher, querendo chorar sem
poder.
Eles me visitavam todas as
semanas mas não queria vê-los. Tua mãe vai morrer de desgosto. Veja meus
joelhos calejados de tanto que rezo.
Ele ergue as calças até os
joelhos para que eu comprove.
Passo os meses encolhido na
cama em meu quarto, já não consigo andar, me surpreendo quando me locomovo.
Estou com labirintite. Pai, me ajuda a atravessar as tábuas bambas deste chão.
Tenho medo de que você
esteja apenas fazendo uma experiência. Que esteja fingindo.
Não estou fingindo que
finjo.
Bem, é de fato uma
experiência — a de que sou capaz de passar por louco. Convenço todos os
médicos, o que não é fácil.
Porque a loucura está em
seu olhar. No olhar de todos. Assim como a beleza. E a alegria. O que sei é que
a loucura está guardada em minha mente feito um arquivo e quando dou por mim
tenho de abrir a gaveta e vivenciá-la. É só um modo de olhar. É irmã da
objetividade. Mas existem outras, muitas outras. Eu a escolhi pela necessidade
de conforto, de não ter de lutar todos os dias pela sobrevivência feito um
macaco de circo. Não me habituo à bonomia, não me apego ao papel de covarde. As
implicações decorrentes são apenas acidentais.
A loucura é minha
teatralização natural e legítima. Minhas recordações são curto-circuitos. Evitam
que as coisas pareçam bem. Não me lembro do estado pré-demência.
Neste mundo neuroeletrônico
em que existo meus sonhos são sonhos congelados, de quem não herdou nada,
cinzas de um que não quis sobreviver.