Amorokê na vila - Capítulo 031

Preciso de sangue. 
Tive de reunir coragem para confessar isso. E me concentrar para soar singelo. 
Não posso permitir que pensem que estou com farol. Preciso de sangue e preciso que acreditem em mim. 
Preciso do elementar. 
Se souber de algo mais elementar que sangue, dê-mo. 
(Preciso, como preciso, da escorreição da minha língua.) 
Será a alma? O espírito? O limbo? 
Se for, como posso obtê-lo e lambê-lo e sorvê-lo e me embebedar? 
Não posso, sei. 
Por isso o que preciso é de sangue. 
Fresco, quente, rápido e urgente. 
Não muito. O suficiente para me lambusar o bigode e a barba, me deixando com a cara de bárbaro nórdico de que sempre tanto precisei e ainda preciso. 
Preciso de sangue, sangue que não é meu, cujo ressaibo me leve à onipotência, por parcos segundos que sejam, de que posso roubar a vida que não é minha. 
Preciso lamber, lamber, lamber a buceta menstruada mais linda e incontinenti do mundo até engasgar e morrer sufocado na minha própria volúpia. 

O escritor do tal de Fred

Lira imberbe de dor e solidão 
O escritor do tal de Fred está trancado em seu quarto em seu mundo de fantasias se recusando a dialogar com seus pais seus adversários imaginários ou não. Se acha um monge eleito portador da verdade divina. Todos os demais viventes encarnam a banalidade irrelevante.
O escritor do tal de Fred é um autoencarcerado revoltado típico. Não a revolta do fatigado justo daqueles que desejam conquistar oportunidades iguais. Sua revolta dormita subjacente na cama de lençóis perfumados a nostalgia recendendo a Omo em seu sangue envenenado. Assistir ao confinamento ao comportamento do escritor do tal de Fred no supremo poder de seu isolamento sua solidão é mais que suficiente para dar de ombros para proferir um veredito. Mesmo sozinho com seu copo de vodka de caipirinha de quiuí sujeitado entre os dedos, uma vela acesa bruxuleosa no ar condicionado ligado, centenas de livros fechados embolorados ao seu redor na mesa e à sua frente na estante, é um sujeito impotente, inadverbialmente raivoso.
A inveja infiltrando gosmenta nas fissuras de seus lamentos de anjo endemoniado inumado em falsas previsíveis saídas clichês de toda uma vida. Não há perdão para as humilhações as mágoas que seus desafetos legítimos ou por razões mórbidas forjados foram empilhando na despensa atrás do balcão do bazar lotado de escaninhos cor de casca de barata de sua cabeça. Quer precisa botar a culpa pelos erros do mundo em alguém que não ele mesmo e, incansável, autômato, cegamente resoluto, busca um bode expiatório que se disponha a renunciar ao balido permitindo o império do silêncio fecundo.  Para se defender de superar seus inimigos desenvolveu um elástico megalomaníaco inesticável se estendendo e retraindo à medida que enaltece os próprios “feitos”. Qual Christopher Hitchens, enxergar a realidade não é seu forte. (Admitamos que não seja o forte de quase ninguém, mas fica definitivamente feio para os que se pretendem inquiridores das gentes.) Flutua dentro dum estado de alucinação permanente amontoando frases que formam uma arenga a se repetir à náusea pelos combalidos linfáticos pronomes pessoais eu, eles, eles, eu, eu sou, eles são, eu fui, eles foram típico dos inócuos perturbados. O cinismo com que tão pleonasticamente denuncia seus torpes defeitos como meras burrices é característico dum gênio alienado.
Não é só. Atrás da porta do quarto está à espera do fim tendo renunciado à tarefa de aproveitar a experiência para amadurecer como qualquer ser vivente que já viveu e morreu neste planeta. Lendo com algo de atenção pode-se quase escutar sua vozinha fraca contraditória dum elefante tombado em decúbito dorsal cochichando uma reza sebenta de mágoa para que o escutem detrás dum monte que desde seu nascimento foi crescendo feito estalactite duma preguiça de operar os sentidos, prontamente identificável com quem se acha no direito de usufruir mesmo que não arregace as mangas se limitando a alimentar uma adoração neurótica às próprias afetações e gestual dramático diante do espelho.
Está praticamente cego e no entanto se enxerga sacador admitindo apenas com indulgência ser um homem culto que se tornou hostil a tudo que destoe do modelo espírito-intelectual que foi se moldando indolente às suas autoidealizações que feito enchurrada irresistível o conduziu à clausura sibarita obsessiva que requer a satisfação contínua quase exaustiva do deleite, pachorramente abdicante e alheio aos desafios inóspitos de quem se propõe retratar “almas” destituído dos métodos próprios dos metódicos. 
Sinto falta do ar envenenado na trêfega leitura das anotações do escritor do tal de Fred. Retorno sonâmbulo em círculo fechado surdo em parafuso ao beco sem saída onde a luz solar dança ora frenética ora vespertinamente pacífica nos telhados cor de terra da Alta Mogiana do mesmo beco. Cumpre desistir, reluto remotamente. Impossível montar algo minimamente inteligível desses milhares de estilhaços cuspidos por repulsiva força alimentada propelida a fel. Flanando a esmo rumo ao quintal cuns pedaços de papel nas mãos, vou me segurando nas havaianas para não meter o pé na jaca do primeiro degrau e mergulhar de cara descendo a escada que já estava aqui quando vim ao mundo e que desço e subo dia após dia e sou incapaz de engendrar um macete qualquer para desembaciar a vista e enxergar uma réstia da realidade e chegar a um desfecho, qualquer que seja ele, e abraçar saltitante um mundo que, dizem, é também meu.
Está certo, meu chapa, não é simples evitar que sob fervura nossas dores se abram feito milho e saltem que nem pipoca. Escritores são bichos em permanente crise sob o olhar longínquo, desinteressado, escalados contra a vontade para o serviço. Muito raramente você parece se aliviar, fica soltinho e leve, seus tormentos decantam no fundo do tacho e sentimentos mais puros, razoavelmente intactos, sobem até a tona.
Quando chego ao alpendre estou de saco vertiginosamente cheio e atiro os recortes na mesa e decido que minha salvação é um poema. A maior, a mais profunda das agonias, creia. Se falhar, não me restará nada senão brochar dentro do forninho cálido que Soninha mantém à minha disposição entre as pernas.
Sento e abasteço três-quartos o copo. O poema desbotou na parede da minha cabeça logo no terceiro degrau, restando apenas umas inscrições rupestres disformes. Nem tudo tem nome neste vasto mundo. Em Goethe, Heine e Schiller, impossível, a mais precisa das línguas não o permite, não é qualquer povo que se dá o luxo das desinências, ninguém vai mexer na ordem de O Freunde, nicht diese Töne.
Estou inerme, olho o céu pusilânime, recipiente vazio sentindo só o casco, preciso ultrapassar os ferros sensatos da razão. Não sei se já disse, fui ler Camões marmanjo. Não se lê Camões marmanjo. Velhos maiores de vinte anos já estão fatigados para os folguedos do caolho com a língua. Olha mãezinha a exaustão dos meus garranchos, a velhacaria dos meus truques.  No advento da maturidade os modernistas me trouxeram algum alívio à alma atormentada de garoto alérgico à poesia. Jamais esquecerei o primeiro encontro com Brecht.
Bato os olhos numa folha de jornal aberta na minha mesa. O crítico sagaz devassa os segredos de mais uma vítima. Adriano Espínola é o da vez.
“São versos notáveis pela capacidade de glosar, com leveza e humor, tanto o serpentário retórico de Camões ou do padre Vieira quanto o estilo epigramático de Sousândrade”.
Saco, acho, a sabedoria embutida nesses dois períodos, mesmo sem ter pendurado meus diplomas na parede e não ter mantido confortavelmente minh’alma num vidro de maionese cheio de álcool isopropílico no quartinho dos fundos bem alto na prateleira longe do alcance das crianças.
“...os quatro versos de “Verão”...
O sol é grande e breve.
A praia e as aves, livres.
A tua carne, alegre.
Sim, sobre ela eu lerei todos os livros.
...invertem o célebre “Brisa Marinha”, de Mallarmé (“a carne é triste, ai!, e já li todos os livros”).
Em minha inveja infinita que me ocupa feito um Argos Panoptes entalado num Gordini sobre cavaletes, não tenho mais forças sequer para soprar as velas acendidas ao sagrado. Sabe quando bate aquele cansaço sujo em que você só quer morrer? Não? Então você não sabe de nada.
Estou farto dos truques poéticos. Carne de ninguém é triste ou alegre aqui ou na China daqui a vinte anos a grande potência econômica, esmagando nossa solerte cultura ocidental, inaugurando a nova Idade Média e enterrando sob trezentos trilhões de toneladas de dióxido de carbono qualquer esperança de salvar o homem e a mulher e seu tolo efêmero samba-canção desafinado e fanhoso éter afora.
Carne é apenas fatalmente nauseabundamente flácida. Tal como os adjetivos e sua sinistra vocação à promiscuidade.
Escritores, poetas, torrando energia para se engambelarem uns aos outros poderiam salvar o planeta do trágico armagedão que assoma no horizonte qualhado de pipas lugubremente enroscadas em parabólicas.
Fujo de casa e caminho cabisbaixo na calçada esburacada e atravesso a rua rezando para que o busão da vila Gerty me atropele, advogadozinho de merda recitando Pessoa, citando Plath e tudo perdeu a graça.
Peço um rabo-de-galo ao Lacerda, o merda, que me serve eufórico com cara de quem está prestes a proferir solene uma passagem d'O castelo.
O rabo-de-galo encalha no pé do esôfago, onde parece se instalar para permanecer uma semana. Saio e subo. Na feira o batateiro exibe na camiseta uma estampa dos comedores de batatas do sujeito que, vendo-se incapaz de retratar a orelha direita em mais um de seus divinos auto-retratos, decepa-a a navalhadas. Volto e desço e me recolho ainda esperançoso. Atendo o telefone, a zinha do outro lado me oferece o plano telefônico da felicidade recitando Herberto Helder me perguntando ”será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?”
Um surrealista, redargo lívido, o mais pobre dos estilos. Quem o senhor preferiria em sua conta? rebate ela por sua máxima vez.
Olha, moça. Pelo amor de quem quer que seja que tenha inventado este mundo e nos posto nele, não faça da literatura um passa-tempo.
Da humanidade meu saco vai-se enchendo além do articulável.
Quero ficar louco.
Oquêi, ela sussurra sutil e prenha duma humanidade que eu jamais ousaria. Fique. Mas não vai adiantar nada. Isso eu garanto. Abaixo os pontos de interrogação.
Sílvia me traiu. Soninha me traiu. Eternamente. Minhas trigueiras. Minhas cafuzas. Baças capitus. Quero ficar louco, será pedir demais?