Preciso de sangue.
Tive de reunir
coragem para confessar isso. E me concentrar para soar singelo.
Não posso permitir
que pensem que estou com farol. Preciso de sangue e preciso que acreditem em
mim.
Preciso do
elementar.
Se souber de algo
mais elementar que sangue, dê-mo.
(Preciso, como
preciso, da escorreição da minha língua.)
Será a alma? O
espírito? O limbo?
Se for, como posso
obtê-lo e lambê-lo e sorvê-lo e me embebedar?
Não posso, sei.
Por isso o que
preciso é de sangue.
Fresco, quente,
rápido e urgente.
Não muito. O
suficiente para me lambusar o bigode e a barba, me deixando com a cara de
bárbaro nórdico de que sempre tanto precisei e ainda preciso.
Preciso de sangue,
sangue que não é meu, cujo ressaibo me leve à onipotência, por parcos segundos
que sejam, de que posso roubar a vida que não é minha.
Preciso lamber,
lamber, lamber a buceta menstruada mais linda e incontinenti do mundo até
engasgar e morrer sufocado na minha própria volúpia.
O escritor do tal
de Fred
Lira imberbe de dor e solidão
O escritor do tal de Fred está trancado em seu quarto em seu mundo
de fantasias se recusando a dialogar com seus pais seus adversários imaginários
ou não. Se acha um monge eleito portador da verdade divina. Todos os demais
viventes encarnam a banalidade irrelevante.
O escritor do tal de Fred é um autoencarcerado revoltado típico.
Não a revolta do fatigado justo daqueles que desejam conquistar oportunidades
iguais. Sua revolta dormita subjacente na cama de lençóis perfumados a
nostalgia recendendo a Omo em seu sangue envenenado. Assistir ao confinamento
ao comportamento do escritor do tal de Fred no supremo poder de seu isolamento
sua solidão é mais que suficiente para dar de ombros para proferir um veredito.
Mesmo sozinho com seu copo de vodka de caipirinha de quiuí sujeitado entre os
dedos, uma vela acesa bruxuleosa no ar condicionado ligado, centenas de livros
fechados embolorados ao seu redor na mesa e à sua frente na estante, é um
sujeito impotente, inadverbialmente raivoso.
A inveja infiltrando gosmenta nas fissuras de seus lamentos de
anjo endemoniado inumado em falsas previsíveis saídas clichês de toda uma vida.
Não há perdão para as humilhações as mágoas que seus desafetos legítimos ou por
razões mórbidas forjados foram empilhando na despensa atrás do balcão do bazar
lotado de escaninhos cor de casca de barata de sua cabeça. Quer precisa botar a
culpa pelos erros do mundo em alguém que não ele mesmo e, incansável, autômato,
cegamente resoluto, busca um bode expiatório que se disponha a renunciar ao
balido permitindo o império do silêncio fecundo. Para se defender de
superar seus inimigos desenvolveu um elástico megalomaníaco inesticável se
estendendo e retraindo à medida que enaltece os próprios “feitos”. Qual
Christopher Hitchens, enxergar a realidade não é seu forte. (Admitamos que não
seja o forte de quase ninguém, mas fica definitivamente feio para os que se
pretendem inquiridores das gentes.) Flutua dentro dum estado de alucinação
permanente amontoando frases que formam uma arenga a se repetir à náusea pelos
combalidos linfáticos pronomes pessoais eu, eles, eles, eu, eu sou,
eles são, eu fui, eles foram típico
dos inócuos perturbados. O cinismo com que tão pleonasticamente denuncia seus
torpes defeitos como meras burrices é
característico dum gênio alienado.
Não é só. Atrás da porta do quarto está à espera do fim tendo
renunciado à tarefa de aproveitar a experiência para amadurecer como qualquer
ser vivente que já viveu e morreu neste planeta. Lendo com algo de atenção
pode-se quase escutar sua vozinha fraca contraditória dum elefante tombado em
decúbito dorsal cochichando uma reza sebenta de mágoa para que o escutem detrás
dum monte que desde seu nascimento foi crescendo feito estalactite duma
preguiça de operar os sentidos, prontamente identificável com quem se acha no
direito de usufruir mesmo que não arregace as mangas se limitando a alimentar uma
adoração neurótica às próprias afetações e gestual dramático diante do espelho.
Está praticamente cego e no entanto se enxerga sacador admitindo
apenas com indulgência ser um homem culto que se tornou hostil a tudo que
destoe do modelo espírito-intelectual que foi se moldando indolente às suas
autoidealizações que feito enchurrada irresistível o conduziu à clausura
sibarita obsessiva que requer a satisfação contínua quase exaustiva do deleite,
pachorramente abdicante e alheio aos desafios inóspitos de quem se propõe
retratar “almas” destituído dos métodos próprios dos metódicos.
Sinto falta do ar envenenado na trêfega leitura das anotações do
escritor do tal de Fred. Retorno sonâmbulo em círculo fechado surdo em parafuso
ao beco sem saída onde a luz solar dança ora frenética ora vespertinamente
pacífica nos telhados cor de terra da Alta Mogiana do mesmo beco. Cumpre
desistir, reluto remotamente. Impossível montar algo minimamente inteligível
desses milhares de estilhaços cuspidos por repulsiva força alimentada propelida
a fel. Flanando a esmo rumo ao quintal cuns pedaços de papel nas mãos, vou me
segurando nas havaianas para não meter o pé na jaca do primeiro degrau e
mergulhar de cara descendo a escada que já estava aqui quando vim ao mundo e
que desço e subo dia após dia e sou incapaz de engendrar um macete qualquer
para desembaciar a vista e enxergar uma réstia da realidade e chegar a um
desfecho, qualquer que seja ele, e abraçar saltitante um mundo que, dizem, é
também meu.
Está certo, meu chapa, não é simples evitar que sob fervura nossas
dores se abram feito milho e saltem que nem pipoca. Escritores são bichos em
permanente crise sob o
olhar longínquo, desinteressado, escalados contra a vontade para o serviço.
Muito raramente você parece se aliviar, fica soltinho e leve, seus tormentos
decantam no fundo do tacho e sentimentos mais puros, razoavelmente intactos,
sobem até a tona.
Quando chego ao alpendre estou de saco vertiginosamente cheio e
atiro os recortes na mesa e decido que minha salvação é um poema. A maior, a
mais profunda das agonias, creia. Se falhar, não me restará nada senão brochar
dentro do forninho cálido que Soninha mantém à minha disposição entre as
pernas.
Sento e abasteço três-quartos o copo. O poema desbotou na parede
da minha cabeça logo no terceiro degrau, restando apenas umas inscrições
rupestres disformes. Nem tudo tem nome neste vasto mundo. Em Goethe, Heine e
Schiller, impossível, a mais precisa das línguas não o permite, não é qualquer
povo que se dá o luxo das desinências, ninguém vai mexer na ordem de O Freunde, nicht diese Töne.
Estou inerme, olho o céu pusilânime, recipiente vazio sentindo só
o casco, preciso ultrapassar os ferros sensatos da razão. Não sei se já disse,
fui ler Camões marmanjo. Não se lê Camões marmanjo. Velhos maiores de vinte
anos já estão fatigados para os folguedos do caolho com a língua. Olha mãezinha
a exaustão dos meus garranchos, a velhacaria dos meus truques. No advento
da maturidade os modernistas me trouxeram algum alívio à alma atormentada de garoto
alérgico à poesia. Jamais esquecerei o primeiro encontro com Brecht.
Bato os olhos numa folha de jornal aberta na minha mesa. O crítico
sagaz devassa os segredos de mais uma vítima. Adriano Espínola é o da vez.
“São versos notáveis pela capacidade de glosar, com leveza e
humor, tanto o serpentário retórico de Camões ou do padre Vieira quanto o
estilo epigramático de Sousândrade”.
Saco, acho, a sabedoria embutida nesses dois períodos, mesmo sem
ter pendurado meus diplomas na parede e não ter mantido confortavelmente
minh’alma num vidro de maionese cheio de álcool isopropílico no quartinho dos
fundos bem alto na prateleira longe do alcance das crianças.
“...os quatro versos de “Verão”...
O sol é grande e breve.
A praia e as aves, livres.
A tua carne, alegre.
Sim, sobre ela eu lerei todos os livros.
...invertem o célebre “Brisa Marinha”, de Mallarmé (“a carne é
triste, ai!, e já li todos os livros”).
Em minha inveja infinita que me ocupa feito um Argos Panoptes
entalado num Gordini sobre cavaletes, não tenho mais forças sequer para soprar
as velas acendidas ao sagrado. Sabe quando bate aquele cansaço sujo em que você
só quer morrer? Não? Então você não sabe de nada.
Estou farto dos truques poéticos. Carne de ninguém é triste ou
alegre aqui ou na China daqui a vinte anos a grande potência econômica,
esmagando nossa solerte cultura ocidental, inaugurando a nova Idade Média e
enterrando sob trezentos trilhões de toneladas de dióxido de carbono qualquer
esperança de salvar o homem e a mulher e seu tolo efêmero samba-canção
desafinado e fanhoso éter afora.
Carne é apenas fatalmente nauseabundamente flácida. Tal como os
adjetivos e sua sinistra vocação à promiscuidade.
Escritores, poetas, torrando energia para se engambelarem uns aos
outros poderiam salvar o planeta do trágico armagedão que assoma no horizonte
qualhado de pipas lugubremente enroscadas em parabólicas.
Fujo de casa e caminho cabisbaixo na calçada esburacada e
atravesso a rua rezando para que o busão da vila Gerty me atropele,
advogadozinho de merda recitando Pessoa, citando Plath e tudo perdeu a graça.
Peço um rabo-de-galo ao Lacerda, o merda, que me serve eufórico
com cara de quem está prestes a proferir solene uma passagem d'O castelo.
O rabo-de-galo encalha no pé do esôfago, onde parece se instalar
para permanecer uma semana. Saio e subo. Na feira o batateiro exibe na camiseta
uma estampa dos comedores de batatas do sujeito que, vendo-se incapaz de
retratar a orelha direita em mais um de seus divinos auto-retratos, decepa-a a
navalhadas. Volto e desço e me recolho ainda esperançoso. Atendo o telefone, a
zinha do outro lado me oferece o plano telefônico da felicidade recitando
Herberto Helder me perguntando ”será
que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?”
Um surrealista, redargo lívido, o mais pobre dos estilos. Quem o
senhor preferiria em sua conta? rebate ela por sua máxima vez.
Olha, moça. Pelo amor de quem quer que seja que tenha inventado
este mundo e nos posto nele, não faça da literatura um passa-tempo.
Da humanidade meu saco vai-se enchendo além do articulável.
Quero ficar louco.
Oquêi, ela sussurra sutil e prenha duma humanidade que eu jamais
ousaria. Fique. Mas não vai adiantar nada. Isso eu garanto. Abaixo os pontos de
interrogação.
Sílvia me traiu. Soninha me traiu. Eternamente. Minhas trigueiras.
Minhas cafuzas. Baças capitus. Quero ficar louco, será pedir demais?