Amorokê na vila - Capítulo 030

Capítulo 030

Ele caminha a passo largo, que faz um semicírculo antes de pousar na areia. “Sente o terreno”, sei, como um felino, e não se permite qualquer distração. É uma forma complexa e densa de equilíbrio mental que me escapa, nem de uma mímica de contingência eu seria capaz, e me lembro quando o pai e o noivo de uma mocinha, Cláudia, a classe média chamava muito suas filhas de Cláudia na época, não se importando com a produção em série, pelo contrário, considerava-a cachê, eles vieram buscar a nossa Cláudia, deles, que pecara feio.

Paulo Francis

Acordei às 7 e tantos, ressaca cavalar, fui passear com Bia até a esquina e voltamos ambos de línguas de fora, a esquina fica a mais de 50 metros daqui, desci para o escritório no modo zumbi, em geral significa que não estou a fim de ir aonde estou indo nem a lugar algum, ligo o PC, li 1/2 dúzia de spams de consórcios de caminhão, convênios médicos, fórmulas para esticar o pinto, respondo alguns, deixo outros para mais tarde, trabalho uns 40 minutos, leio uns trechos dos 7 livros que estão abertos na minha mesa, leio jornais online, leio trechos de livros online, dá uma hora, subo pro alpendre, abasteço meu copo, bebo, encho outro, bebo, outro e outro, como de má vontade um saquinho de amendoim japonês pra forrar o esôfago, vou pro buteco aqui na frente, tomo umas caipirinhas “pra rebater, jesus” (já sem condições de fazer a contagem), volto, venho conferir emails, leio jornais de novo, escrevo aboborinhas até mais ou menos as 5, saio pra psicanalista, trocamos as bobagens racionalizantes de sempre, pergunto umas dez vezes se ela ainda tem aquela garrafa de Chivas Regal escondida atrás do divã, jura de pés juntos, não, pouco antes do término da sessão se deita ao meu lado no mesmo divã, que é que estou fazendo aqui deitado? odeio divã, damos uns amassos, me implora que a coma por trás, sua posição preferida, tento explicar que não tenho mais energia para transar, durante a explicação lhe passo a conversa, me dá pelo menos um gole, me deixa pendurar a sessão (devo estar devendo 35, se Freud não me deixa mentir), volto pra casa, abasteço o copo, sorvo, desço pro escritório, ligo a máquina, confiro emails, leio poemas do Leminski, infantis, escrevo umas porcarias, volto pro alpendre, reencho o copo e cá estou pronto para mais uma fantástica experiência nesta minha vida de fóssil embebido em álcool.
Me sinto um robô que faz parte dum mecanismo em que sou apenas uma pecinha sem importância e sem futuro e sem esperança enquanto a vida parece correr lá fora longe do meu alcance. 
Literatura requer coragem, a vida, não. A vida não requer nada, a literatura, tudo. A vida não requer nada porque viver não exige saber conjugar verbos diretos ou indiretos. A vida não se presta a nada, pois não existe. É apenas um nome abstrato inventado para designar a combinação formada pela incidência e as cores das luzes, a reverberação dos sons e seus ecos, a intangibilidade do frescor da neblina. Acima de tudo, a incomensurável passagem do tempo. Que nossos tolos relógios ficam loucos tentando medir.
Balbuciar “vida” é criar uma prece de exaltação ao esquecimento. Pensamos que sabemos do que falamos quando proferimos esse nome. Mas quando falamos “vida”, o tempo simplesmente para pela duração necessária para pronunciarmos as duas sílabas enquanto algo desmorona dentro de nós num movimento gigantesco e inaudível, insentido, que os cadáveres apanhados nos acidentes do dia a dia vislumbraram em toda sua magnificência e horror um segundo antes de ver seu mundo carregado embora. A vida é uma montanha que rui, rui e rui quando pensamos que é nossa missão enfrentá-la. É apenas uma ideia cheia de vácuo que imaginamos estar sempre guardadinha ao alcance da nossa necessidade de substância.
A literatura requer tudo porque é feita da vida que não há mas que mesmo assim constitui sua origem e sua base. Para mim e, acho, para quem quer que escreva, é vicária, exerce um papel de substituta na falta de algo mais apropriado. Como tal, quebra-galho. As palavras são seus constituintes, e como comprovou o linguista francês Saussure, são arbitrárias. Não têm nenhuma relação legítima ou de causa e efeito com o que conotam.
A literatura, impossibilitada de compreender algo que é inalcançável às palavras, tem de se contentar com tratar de gente como a gente através do teclado de gente como a gente. Ainda se nosso teclado tivesse tivesse bilhões de teclas...
Daí um sinal de alerta aos frívolos que dispensam os que se dispõem a tentar agarrar o rabo da besta sumariamente c'um seco piparote de seus dedões limpos do sangue e a assepsia de sua inaquilatável ingenuidade.
Leio Blake desde rapazote e por anos mantive London numa moldura pendurada numa das paredes do meu escritório entre uma foto em que Pessoa está diante dum balcão virando um copo de Clarete e um retrato de Kafka amarguradíssimo. Minhas paredes eram cobertas dos grandes. Me sentia protegido e meio cúmplice. Um dia tirei tudo, deixei só o Kafka, imagino que sem nenhuma razão particular.
Não acho que exista (grande) poeta que se mantenha ao largo do excesso ou não se devote a buscar algo de sabedoria. Assim como não há grande poeta que passe a existência propalando esse otimismo bobo do de-bem-coa-vida. Não existem grandes poetas otimistas, joviais, assertivos, leves. Period. Paragraph. Colon.
Tenho dúvida se experiências intensas sempre são enriquecedoras. O que sei é que são as que ficam e que isso é o óbvio.
Também tenho (grande) dúvida sobre a utilidade da experiência na formação do meu intelecto. Digo, A Experiência, não apenas as ruins. Venho guardando diligentemente comigo muito do que vivi na adolescência e nunca deixo de sentir inveja de mim naquela época quando lembro. Ser provido de recursos vocabulares para apreender a experiência não é a questão aqui. A adolescência é um distanciamento do mundo tão assoberbante e autêntico, que passamos (nós, deslocados) o resto da vida tentando compreender e, tomara, reviver. O que nos deixa um travo azedo na boca. Tudo parece ter sua hora.
Rimbaud atingiu seu auge estético aos parcos 16 anos. Nessa idade eu ainda lia tudo que me caísse nas mãos, absolutamente inseguro de que rumo tomar. Se eu-aquele pudesse ter perguntado a eu-este, eu-este responderia, esquece essa bobagem de rumo. Eis um dos grandes problemas do fenômeno da experiência. Esta faz parte do nosso instinto de sobrevivência e leva de roldão quase tudo que pensamos ter de sagrado em nós.
Iluminação? (Estou me esforçando para resistir a uma das minhas piadas.)
Se dissesse quantas vezes atinjo a “iluminação” num só dia, você na certa riria. Iluminação, e “rumo”, são conceitos que me enfiam na cachola desde que aprendi a falar e de que, junto com todo o resto de lixo alheio que me obrigaram a aceitar como meu, me esforço dia após dia para deitar fora.
Pensar de verdade exige demolir os monumentos mentais que nos inculcam desde o berço em nome da sobrevivência. Ponto para a raça. Afinal não devemos desprezar os 5 mil anos em que vimos aprendendo a derrotar a natureza para não morrer de fome e frio. Mas, de novo, nada a ver com escrever. Por que não escrever no escuro? É, acho, o que fazem os escritores em sua maioria. A escrita tem uma luz própria que leva indiferente o autor subjugado e que prescinde da nossa. De minha parte comecei a escrever do jeito que gosto depois que percebi que tinha de me desfazer dos monumentos erguidos por outros. Aos vinte, escrevia empolado e insincero qual um causídico fazendo um pleito a um magistrado. Acho que é por isso que muitos escritores jogam na lata de lixo grande parte do que verteram antes de atingir a “maturidade intelectual”. Hoje obro muita porcaria e me dou por satisfeito.
A iluminação excelsa só cabe aos excelsos. E na forma como vejo as coisas hoje, iluminação para mim guarda uma irrecorrível conotação de religiosidade e dessa procuro cair fora no ato. Os budistas dizem ser extremamente iluminados mas parecem não saber necas de si mesmos. E ainda cometem terríveis injustiças em nome de sua inner light.
Bebo, e fumo, por prazer, não necessidade ou buscando inspiração. Com o tempo você aprende que o prazer é um bom critério de desempate. Na falta de outros minimamente confiáveis. Que outras alternativas você tem? Seu pai lhe ensinou a salvar a própria pele e tal ensinamento mastodôntico acachapa todos os outros que no fundo você sabe que devia, ou podia, ter aprendido e não aprendeu.
Para mim particularmente é aprendizado recente. Sempre cometi “excessos”. Mas antes eram pelas razões e para os propósitos errados. Na maioria me levavam a fugir, sem nenhuma ideia para onde. A fuga, tal como o rumo, talvez seja o maior dos nossos erros. Nos ensinam a ser covardes, lição que se enraíza indelevelmente do nosso cérebro. E as implicações são simplesmente nefastas. Desenvolvemos uma blindagem de que nada sai e em que nada entra. E nos enclausuramos numa casamata, munidos duma arma que não sabemos direito o que seja, para derrotar inimigos que não sabemos direito quem são.
Não, meus “excessos” não fizeram nem fazem de mim um visionário. Não quero nenhum poder de enxergar além, de mim ou do que quer que seja. Minha limitadíssima realidade me basta. E é imensamente mais do que sou capaz de destrinchar. Meu escritório, onde passo 18 horas do dia, fica lá nos fundos do quintal a 30 metros da minha casa. Me dou por feliz quando ao longo desse trajeto que percorro em 20 segundos, consigo descer um tico em direção às profundezas cuja porta ora encontro aberta, ora sequer desconfio que exista e tenho a chance de ligar o computador ainda retendo algo digno de nota. É raro, muito. Minha cabeça tem foro próprio e não dá pelota às minhas vontades. Eis outra lição que aprendi tarde. Antes vivia tentando botá-la num arreio, guiá-la pelas belas sendas da imaginação. Minha luta diária é exercitar o descontrole. Não é moleza, ó mãe.
Lamento tremendamente por quem chegou a um nível de depressão equivalente ao meu e torço para que consiga se safar. Deprimidos me dão vontade de chorar, por conhecimento de causa.
Sempre curti brincar de deprimido. Não sabia distinguir de tristeza, bode, tédio, ódio, normalidades normais. Vejo moleques por aí se proclamando deprimidos e lastimo que nem imaginam a fria em que pretendem se meter.
Na minha família é herdada. A minha foi deflagrada com a morte da minha mãe em primeiro de setembro de 2009 aos 95, os últimos cinco anos prostrada de fadiga de viver, sinais diários do fim, e eu me considerava relativamente preparado. Outra vez, as peças que a racionalização nos prega.
Na semana seguinte, lendo um livro não lembro qual, de repente me senti num estado inédito e irreconhecível. Até aí, mais ou menos normal, sempre tive mudanças de humor. Imaginei que amanhã passaria como das outras vezes. Piorou, mas. Em dois dias estava catatônico, inerme, destituído de pensamentos e vontades e desejos e senso de autopreservação. Levei dois meses pra admitir que precisava de ajuda. Se vivesse sozinho, seria definitivamente o fim. Morreria de olhar fixo no teto rachado do quarto.
Minha depressão é périplo íntimo, certezas castradoras, coragem de se atrever à viagem, Blake, o excesso de mim mesmo.
Vou fazer um tipo de confidência. Talvez um dia publique estas anotações e sei que é um perigo dar munição a desconhecidos — depois podem querer usar minha sinceridade contra mim. Já aconteceu antes. Mas não me preocupa muito. Quando acontecer de novo reagirei de acordo com o estado mental em que estiver na hora. Serei furibundo. Não tolero safados.
Em algum momento entre a pós-adolescência e a idade da razão experimentei um turning point. Minhas certezas mais instintivas e naturais cederam terreno às injunções do pragmatismo vital. Foi exatamente quando emergiram minhas primeiras noções do que significa ser adulto e responsável. Renunciei ao meu “projeto” pessoal, pois que o tinha muito bem claro na cabeça, para me submeter às inexoráveis rodas de que falava Herman Hesse com o assombro da criança de pureza violada.
Por encanto (as tais injunções etárias são de fato irresistíveis), vi que chegara a hora de abandonar minhas ilusões infantis e finalmente partir para a briga. Parei de escrever, deixei as drogas pesadas, casei e me coloquei à disposição da vida para que ela me conduzisse pelo caminho que lhe aprouvesse.
Agora só quero, e posso, adiantar que a vida efetivamente me tomou pelo braço e tem me puxado, ora a contragosto, ora de olhos deliciosamente fechados, em direções insuspeitas.
Mas (?) tenho presente que um dia lá trás fui meu próprio senhor. Não há como não fantasiar o que poderia ter sido e não fui. A única certeza é que estaria morto, sem considerar o mérito da questão.
Sei que não demonstrei nada do que pretendia demonstrar. Não queria demonstrar nada. Aos meus desafetos, prato cheio. Pior para eles, sempre à espreita duma boa presa mas eternamente esfomeados.
Duvide. Duvide dos seus pensamentos, das suas fantasias, dos seus sonhos. Duvide do instinto do cão que se acha no dever de perseguir o gato. Duvide do que lhe dizem. Das suas dúvidas. Duvide de mim, duvide de você.
Duvide do seu caminho, duvide que possam haver caminhos. A noção de rumo, fuga e caminho é demasiadamente física, evocadora do remoto, inacessível mundo lá de fora. Não quero andar, seguir a lua nem o sol. Minhas ruas não estão no Googlemaps. Os astros simplesmente transladam incônscios de suas órbitas. Se soubessem, provavelmente se rebelariam de seu destino e provocariam a hecatombe final. Por mim, nada contra.