David Foster Wallace (e quem quer que
tenha neurônios, for that matter) lascava o cacete na indústria cultural
americana que investia(e) pesado na nostalgia pra vender bidu. Concordo, ainda
não perdi de todo meus neurônios, pero la nostalgia é a última arma que me
resta quando tudo mais falha, e falha (falência) tem sido minha constante desde
meus seis meses de idade, piorando à exacerbação nesta minha terceira, e última,
químio. Related individuals já estão notificados, é o ponto
final, chega de padecer ingloriamente nas garras de doctors ultraleves e
enfermeiras bisonhas e carniceiros em geral. Há uns meses meu onco me pergunta
pela enésima “como vai indo?”, “se soubesse que o câncer era tão gostoso, tinha
pegado antes”, respondo pra calar a boca do miserável. Depois dessa o sicofanta
mantém os olhos no chão quando chego. Pelo menos parou de estender a mão, o
toque alheio me dá nojo. O riso e o de-bem-com-o-bidu são onipresentes no
ambulatório, nas consultas, na coleta onde me arrancam meu sangue aguado a cada
duas semanas. Outro dia a zinha me pergunta se tenho religião, se acredito em
alguma coisa, acreditar ajuda, viu seu Vilson. Vilson é a puta que los paril. Ainda
não estou pronto pra esse tipo de troco mas devo chegar lá em duas ou três
semanas. Eis o insulto supremo, embora deteste meu nome. A única explicação
plausível é um insider ter passado a info à sirigaita, nada me bota mais
iracundo. Tumores são capazes de eclodir alhures aqui dentro. Psicopatias partem em jornada interestelar por meu cérebro em classe executiva. Contenho pendores homicidas a
muito, muuuuito custo. Vilson é o pai. A mãe. A vó. O tio da vó. A vó do tio da
vó, puta merda. Que, torço sofregamente, deve estar bem mortinha. Vilson é o último
personagem de Macunaíma antes de Mário de Andrade cortar 5 dos 7 cadernos
originais. Vilson é o D.F. Wallace enforcado na sala de casa, com cujo cadáver
a esposa deparou num prosaico abrir da porta da frente.
A bem da mentira, acho que nunca resisti
a um ataque nostálgico. Talvez experimente no próximo, daqui a minutos. Um
professor da ECA implicava connosotros quando não determinávamos a quantidade. Okay,
daqui a oito’. Uma noite esbarramos no Bate-Pinga na entrada da Cidade
Universitária, esculhambei com ele, inteiramente, totalitariamente ao meu
feitio quando não estou melancólico/nostálgico, dando meu show pros dois ou três
membros semi-eretos da Libelu também na mesa, arrebatados com minha eloquência e topete. Mecanismo
compensatório, praga das pragas, nos impede de atingir uma verdade mínima que
seja de nós mesmos, forçando detours,
impondo equivalências. Durante a beberagem ele insistia em tocar minha mão, que
eu afastava irritado, sem intenções inexplícitas, suponho. Lhe disse que
era/sou como Cézanne, averso ao bidu, o cara se desconcerta, não sabia,
professor da ECA, sei, escola de comunicações, vocês precisam ver o que Paulo
Francis tem a dizer sobre a mudança do nome de Jornalismo para Comunicações em A segunda mais antiga profissão do mundo,
olho em volta, legiões de bichos-grilos convictos de que mudariam o mundo amanhã, depois, quando lhes desse bidu, a ingenuidade da juventude
aliada à insolência dos commies, todos
de barba por fazer como eu, muitos quarentões, esquenta-bancos universotários
que deixavam os carrões na garagem pra não pegar mal, inúmeros canhões de cara
mas bem-feitas de arquitetura, que coxas, que glúteos, que, ó mãezinha que me
deixou só neste vasto mundo, ventres, o ventre feminino enxuto, ligeiramente abaulado
me faz poeta, espanta minha tristeza, resgata,
ugh, dois por cento da minha crença no ser humano. Umas asiáticas, christ,
imbatíveis quando belas. Belo, bidu, me enchi de matracas estéreis e salvadores
do mundo e caí no mundo numa das incontáveis rendições de que me orgulharei
ao túmulo, a universidade neste país é uma piada, really, e segundo um olheiro particular
postado em cargo-chave só tem piorado no esquerdismo calhorda e canalha de
professores e bidu.
Hoje tenho o cabelo e a barba raspados, não
espero ninguém, ninguém me espera, ninguém me visita, não visito ninguém,
trocar ideia só com meus dois marmanjos do coração e olhe lá, a perda de tesão
da idade é fato, creia, paixões viram cinza, a esperança dormita moribunda sob estertores
latejados, os horizontes morreram neste infindo, mortalmente alvo álgido descampado
vazio.
Tal como o flagelo da nostalgia, passar a
vida num cemitério gélido não é opcional. Este papo é, estou ciente, pesadérrimo.
Sou um artista apenas mediano, muito longe dos grandes, mas também sei que esta
é a conversa que os grandes levam, não que seja esta a razão por que bidu. Papo
furado me dá nos nervos, no meu tempo esticava minha mudez ao extremo, o
pessoal me dava aquele olharzinho oblíquo de quem está diante dum etê, nunca me
incomodei, hoje me incomodo que me exijam que tome parte da enorme ciranda
nefasta dos frívolos bon-vivants, me conformo pensando que eles não têm ideia
do que Eugene O’Neill está falando, se pudessem matariam os poetas no útero em
seu esquerdismo pragmático burro em cíclica autoimolação expiatória.
Pausa para os e-mails, como aprendi a
escrever lidando com a indústria, de que nunca falei nem vou falar, não há vida
inteligente, apenas concorrência biológica a mais grotesca, definição que quem
não me conhece tomaria por de esquerda. Já fui, naturalmente, ainda sou um tico
mas nada que se encaixe nos dogmas dos babacas que se matam para ocupar um
lugarzinho no, ugh, espectro ideológico.
Como já disse inúmeras bidu, sou tal qual Rubem Fonseca, idiossincrático. (Como
já disse inúmeras bidu, Fonseca, acossado por jornalistas num evento comercial a
que deve ter comparecido de malíssima vontade, teve de se declarar como tal pra
cortar a onda. Garanto que se arrependeu de ter atendido ao convite de seu
editor.)
Nostalgia é lance absolutamente narcísico
e nenhum escritor digno bidu está isento do narcisismo. Abundam explicações ruins
sobre por que alguém escreve. Para Leo Rosten o escritor tem necessidade de,
jesus, partilhar, palavrão que nunca imaginei um dia ia ia teclaria com estes
longos dedos de músico inspirado porém incompetente que papai me deixou. “Atrás”
da partilha viria a necessidade de ser, hmmm, compreendido. Compreendido, eu?
Pela enésima, não me entendo nem espero que outros me e não será escrevendo que
haverei nem haverão de. Quero o que todos queremos, me exibir. Rosten pretendia que o escritor busca
mais compreensão do que respeito ou elogios ou “até” amor. Mas não se enganou
por completo, em outro momento decretou que “todo escritor é narcisista, o que
não significa que seja volúvel, apenas um arrematado egoísta”. Os grandes
também adoram dar pitaco. Benjamin Franklin, enquanto empinava papagaio e
descobria a eletricidade, foi lapidar, obviamente: “Escreva o que valha a pena
ler ou faça o que valha a pena escrever” (fica muito melhor no inglês que
prescinde da preposição no caso mas minha tradução é quase tão genial quanto). Confirmando
o que penso do assunto, Cyril Connolly disse que “é melhor escrever para você
mesmo e não ter público do que escrever para o público e não ter você mesmo”. Outro grande, Somerset Maugham, cravou que só
um escritor medíocre sempre dá o melhor de si” (putz, essa é digna dos contos
do cara). E minha amada Sylvia Plath vem com um dístico à altura de sua poesia:
“Pode-se escrever sobre qualquer coisa na vida, desde que se tenha peito para
tanto, além de imaginação para improvisar. O maior inimigo da criatividade é a autodúvida”.
Quando não estou nostálgico, quando meus
mecanismos compensatórios me dão uma pequena trégua, vejo esfarelar diante dos
meus olhinhos tristes minhas dúvidas sobre mim mesmo, agarro minhas dores e
meus amores com toda a volúpia de que sou capaz e degringolo neste parafuso
enlouquecido. Cutuco meus talentos e minhas fraquezas, dou o melhor de mim,
escrevo o que vale a pena e o que não vale, cometo barbaridades, logro efeitos
dourados, me amo, me odeio, improviso e planejo e toco em qualquer coisa
existente neste mundo, desde que exista em mim.