De mal com a vida

— Sabe essas pessoas que estão sempre bem?
— Se sei. A, como sei.
— Pessoalzinho otimista, eterno ar de regozijo na fuça.
— Pétreo.
— Pétreo o quê?
— O regozijo, ora.
— Não fazem outra coisa senão mostrar aos outros...
— Que estão bem.
— Será missão?
— Doença, vai ver.
— Assepsia neurótica.
— Compulsiva.
— Se tá tão bem, pra que ficar dizendo?
— Vai estar tão bem assim na putaquepariu.
— “Estou de bem com a vida”, ficam espalhando aos quatro ventos.
— Fico doido quando ouço essa expressão.
— Qual? Aos quatro ventos?
— Essa também. Mas a outra me dá vontade de tacar uma martelada na cabeça do desgraçado.
— Ou desgraçada.
— Pois é. Tem filhodaputa dos dois sexos.
— De repente até criancinha de colo vai dizer “mamãe, titô titem ta tita.”.
— O meu cachorro, se soubesse falar, latiria: “Au au de bau aida.”.
— Os passarinhos cagariam na nossa cabeça e piariam: “Piu piu pipipipi a vida.”.
— Dia vai chegar que as galinhas vão botar ovo com a inscrição: “O conteúdo deste produto está de bem com a vida.”.
— Os raios vão te acertar na cabeça, te derretendo os miolos, e os trovões vão ribombar naquele vozeirão: “Você tem de estar de bem com a vida”.
— Pra ligar o computador, a senha seria…
— Estou de bem com a vida.
— Que mundo feliz.
— De pessoas politicamente felizes.
— Débeis mentais débil-mentalmente felizes.
— O miserável tá tomando no rabo mas fica na tua frente, sorriso de tonto aberto na cara marota, recitando.
— Piores são os fedepês que exigem que você também esteja de bem com a desgraceira.
— Esses dá vontade de esganar.
— O cara te olha, vê que você tá mais aperreado que o Lampião perdido na caatinga…
— Mais acabrunhado que o Kafka levando ferro do pai…
— Mais apoquentado que o van Gogh, navalha na mão, decidindo qual a orelha…
— E solta sem dó nem piedade, com voz animada de locutor do Destino: “ô cidadão. Tem de ficar de bem com a vida.”.
— Ai que calafrio na espinha.
— Se eu pego o sicofanta.
— E tem aqueles que vêem tua cara de padecimento, não falam nada, dissimulam, mas você percebe que estão admirados, pensando “mas esse cara não tá de bem com a vida, seu”.
— Para eles, é simplesmente impossível existir alguém que não fique repetindo o refrão besta.
— Uns arregalam o olho como se você fosse doente.
— Virou sinônimo de mal incurável.
— Pecado.
— Os tipo juiz são dose. Te condenam como se você tivesse cometido um crime.
— Pior é que é uma condenação muda
— E tácita. O júri te olha já sabendo que você vai ser condenado. Antes do julgamento.
— Não te dão a chance de te defender do teu suposto crime.
— O crime de não estar de bem com a vida.
— Como se fosse humanamente possível.
— Estar de bem com a vida.
— Feito essa gente besta.
— Calhorda.
— Cafona.
— Senhores e senhoras do mundo.
— Nobres.
— Babando o mantra infernal.
— Como se você quisesse.

— Estar de bem com a vida.