De anjos, ratos e outras pragas

(Umpf!)

Reli ontem as cartas a um jovem poeta. Li a primeira vez rapagão em 1975. Minha irmã, para quem o despencar da idade vem sendo mais calamitoso do que para mim, ganhou do namorado dermatologista judeu Naum. Naquela época ainda havia uma colônia judaica nesta mini-Salzburgo em que também tive direito ao meu Grünkranz. Todos temos, acho. Bem-aventurados os que não percebem. É deles este mundo em que seres espaciais levam seus filhos à escola arrastando pela cidade uma carcaça de lata de 3 toneladas sorvendo 2 litros de gasosa por km, tendo no porta-copo no painel um balde de coca carregado de cubos de gelo, prestes a perder seu empreguinho manero, se perguntando por que deus é tão injusto com wasps de boa-vontade. Meu Grünkranz atendia pelo nome de seu Vicente. Pobre seu Vicente, nordestino tipo presidente da academia geriátrica de letras, fala escorreita à altura, sofreu o cão com o menino aqui. Seu instituto de ensino nunca mais foi o mesmo depois da minha razzia. Religiosos têm a pretensão de ver a vida como uma passagem. (Religiosos são seres pretensiosos, arrogantes e egoístas.) Não, passagem foi o que houve entre mim e o instituto de ensino de seu Vicente. Às vezes avisto um ex-coleguinha por aí num carrão importado. A maioria se deu bem. Os do tipo alheio aos Grünkranz da vida. Alguns são ou foram vereadores. Muitos advogados, como Oscar. Perdi meu amigo Oscar judeu na debandada que empreenderam na mesma época. Fecharam suas lojas de móveis na mini-Salzburgo e foram todos para Higienópolis, numa mini-diáspora. É um dos eventos que tenho a impressão terem acontecido só para a minha apreciação particular. Tentei frequentar a casa do Oscar, mas na terceira vez o pai vetou a entrada de goys. Pobre Oscar, tinha uma “sala de jantar” igual à minha, doze cadeiras forradas em matelassê de encosto alto, mesona interminável e aparador, tudo em cerejeira. Mas ele sofria mais que eu ─ uma das paredes de sua sala era tomada de alto a baixo e de cabo a rabo por um espelho. Me torturava ter de passar por ali, olhando para o outro lado para não me ver au naturel com a sala de jantar esquizofrênica ao fundo. A mãe dele era mais neurótica que a minha, o olhar ganhava em desvairio, embora fizesse questão de imprimir à voz tonalidades suaves, uma discrepância que me impressionava. Oscar, falastrão, me passava todo o babado familiar. Ao contrário de mim, rebelde anárquico com tendência a me amotinar, ele professava uma insatisfação disciplinada que não excedia a margem segura que pudesse afetar sua capacidade futura de ganhar dinheiro e que, percebi muito depois, nada tinha da revolta em que eu me debatia desamparado. Aprendi que a família judaica típica faz água por todos os lados, tal como a católica, mas o peso do culto à tradição, o senso de sobrevivência (de que sou quase totalmente destituído) e a vocação para faturar ajudam a segurar a onda. Vi Oscar algumas vezes anos depois, na última puxando um baseado atrás do outro e, como todo maconheiro da pesada, sem o mínimo de concentração para sustentar um bom papo. A vivacidade intelectual virara pó. Por isso, entre outras, prefiro alcoólicos, os neurônios se refazem minimamente no dia seguinte.
Na mesma época eu carregava no meu bolsão tira-colo à la bicho-grilo Duino Elegies, versão bilíngue alemão-inglês, que lia no primeiro para confirmar no segundo. Levei as elegias por todo canto uns dois anos. Engraçado como fui deixando Rilke de lado lenta e gradualmente, até quase esquecer nos últimos tempos. Parece ter sido uma “experiência” própria da idade. Hoje torço a boca ante anjos, querubins e seres etéreos em geral. Relendo as cartas ao jovem poeta, me consolo um pouco. E compreendo por que naqueles tempos tinha tanta dificuldade em vencer aquela espessa simbologia das elegias, para mim impenetrável. Só agora posso ver que não tinha paciência suficiente para dar conta da miríade de significados intrincados. Digo, pelo menos na linguagem. Fantástico o poder duma releitura. Talvez tente reencarar as elegias qualquer hora.
Nas cartas Rilke se mostra excelso. Será essa a qualidade que os “estudiosos” exaltam e que lhe conferem direito a um busto de bronze? Na introdução, Cecília Meireles, de quatro obviamente, dizendo que ”é uma das mais autênticas consagrações da poesia, no que ela possui de mágico, divino”. Meireles ressalva que Rilke não dá a Kappus, o jovem poeta que “submete” seus poemas a Rilke, uma “receita literária”. Alhures, Meireles nota en passant que não sabe que destino teve Kappus nas letras. O jovem poeta provavelmente saiu de mãos abanando. Rilke se recusa a mastigar o osso para o mendicante correspondente. Mendicância servil, com perdão do pleonasmo, que Rilke vai desancando com sutileza e elegância, a seu feitio.
Em algumas passagens as cartas servem de mapa para poesia do próprio Rilke e para poesia em geral. Ajudam a firmar os conceitos que você vai desenvolvendo ao longo dos anos de leitura e que sempre ficam algo vagos no fundinho da tua cabeça. Logo na primeira página da primeira carta Rilke escancara a janela, descortinando um dos panoramas do que escreveu: ”a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou”. (Tradução de Paulo Rónai, competente e honesto.)
Falando em honestidade, Rilke é campeão. Me divirto tentando imaginar a cara de Kappus meio decepcionado. Fiel ao seu próprio lema de honestidade acima de tudo, Rilke obviamente não faz pose para agradar o outro e se limita rigorosamente a falar de idéias e impressões que ele mesmo desencavou em sua lida de poeta, nunca de outras, como tão facilmente somos levados a fazer quando escrevemos. ”Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo”. Mesmo para um poeta “iniciante”, pretensamente já em contato com os próprios sentimentos e familiarizado com a posição permanentemente perturbada e perturbadora que um poeta deve ter na/ante a vida, não é um conselho fácil de engolir. Mesmo vindo dum Rilke. Ou sobretudo vindo dum Rilke. E Rilke vai pegando mais e mais pesado a cada nova sentença (aqui, sim, nos dois sentidos). ”Investigue o motivo que o manda escrever. Confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever?” Sentença de morte. Quem seria bastante honesto para se autocondenar a esse veredito implacável? ”Sou mesmo obrigado a escrever?” Quantos “poetas” sobrariam no panteão se levassem o mandamento a sério? Fiquei meio sem jeito. Acho que não morreria se por um motivo qualquer ficasse sem escrever, mas imagino que a maioria de nós cidadãos comuns merece a chance de morrer tentando.
Avanço nas cartas registrando meu desalento comigo mesmo diante de tamanha dignidade. Como em qualquer grande leitura, respirar fica mais e mais incômodo. Rilke exige responsabilidade. ”Se a existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga que não é bastante poeta para extrair suas riquezas”.
Rilke é excelso e magnífico e árido como os personagens de seus poemas. Enaltece a paciência e a solidão como os dois grandes caminhos rumo à expressão das experiências internas. ”É precisamente nas coisas mais profundas e importantes que estamos indizivelmente sós”. Na terceira carta estabelece uma lei para mim especialmente significativa: “Leia o menos possível trabalhos de crítica. Obras de arte são de infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica”. Instado por Kappus a falar sobre Richard Dehmel, equivalente alemão de Henry Miller, devotado na vida e na arte ao amor e ao sexo, que o próprio Kappus descreve como alguém que vive e escreve no cio, Rilke bate o martelo: ”Por amar apenas como macho e não como homem, nele a sensação sexual é algo de estreito, selvagem, cheio de ódio, temporário, efêmero, que lhe diminui a arte, tornando-a equívoca e duvidosa”.
Assim vai. Linha após linha, me sinto crescentemente frívolo ante os preceitos ético-estéticos sobre-humanos de Rilke, até quase o insuportável. Aparentemente o próprio Rilke não aguentou a barra de purista moral que se autoimpôs. Em vários trechos pede desculpas a Kappus pela demora em responder, mencionando indisposições, incômodos e cansaço. Como para qualquer romântico digno do nome, o corpo lhe pesava qual fardo intolerável. O barato dele era se internalizar esteticamente, com todas as implicações que isso deve ter. Leio na rede que achava que seu sangue se envenenara depois que se espetou com o espinho duma rosa e então cunhou seu próprio epitáfio: ”Rosa, oh pura contradição, volúpia de ser o sono de ninguém sob tantas pálpebras”. Depois de sua morte descobriram que tinha leucemia. Passava longas temporadas num sanatório perto de Montreux, Suíça, tentando se refazer dos estragos produzidos na saúde provavelmente por suas incursões interiorizantes. 
Divido com ele problemas crônicos de saúde. Kappus introduz as cartas relatando que estava no parque da academia militar que cursava, tendo nas mãos um livro de poesia, quando o capelão se aproximou e, surpreso de ver que o autor do livro era Rilke, lhe falou sobre o rapaz que frequentara a academia quinze anos antes. Disse que Rilke era reservado e ”suportava com paciência o constrangimento da vida do internato”. Na terceira carta Rilke recomenda a Kappus ”Deixar amadurecer nas trevas do indizível cada germe de sentimento e aguardar com humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade”. E na nona: ”desejo que encontre paciência em si para suportar e simplicidade para crer; que confie no que é difícil, entre outras coisas na sua solidão”. Por mais que exercite minha imaginação, não consigo me enxergar aguardando paciente a passagem do tempo no meu instituto de ensino sob a vista severa do Grünkranz que me coube enquanto os futuros vereadores, que à época já se mostravam selvagenzinhos dignos dum circo, celebravam ao meu redor a facilidade e a felicidade de viver. Nunca soube aceitar naturalmente os meus suplícios.
E tento imaginar Rilke vivendo no mundo de hoje, tendo Lulla na presidência, Ivete Sangalo como “celebridade” e Marilena Chauí como “pensadora” paparicada pela mídia. Duvido que encontrasse um refúgio à inominável boçalidade que nos assola. Por certo criaria asas espontâneas e voaria para junto dos anjos inefáveis com que se entretinha nos intervalos de suas visitas ao sanatório.
Queria ter conhecimento suficiente para situar Rilke no grande mapa do decantado Geist germânico, irmão gêmeo do proverbial Angst alemão. Alguns identificam a origem do seu anti-semitismo nos ideais de grandeza histórica germânica não em Wagner e menos ainda em Nietzsche, e sim na poesia nacionalista de Hölderlin. Tenho cá para mim que a base do nazismo está na busca romântica do ideal grego pelos krauts, que parecem nunca estar contentes com os belos cabelos loiros e olhos azuis e os vitaminados neurônios que deus lhes deu.
Lá pela quarta carta de Rilke ao jovem Kappus, já acachapado por me ver tão vil ante aquele poço infinito de nobreza, não tive dúvida: peguei Notas do subterrâneo (ou seja lá qual for o nome em português, cada um chama dum jeito) e botei ambos lado a lado, alternando a leitura de tempos em tempos.
“Sou um homem doente. Um homem despeitado. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo absolutamente nada da minha doença, nem sei ao certo do que sofro. Sou supersticioso ao extremo; o suficiente, ao menos, para respeitar a medicina. (Tenho bastante instrução para não ser supersticioso, mas sou.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Mas eu compreendo.”
Não é que o contrapeso deu certo? Tem hora é bom se sentir gente.