A campainha


Três da tarde. Estou num dos meus diversos estados de dolce far niente quando a campainha da rua toca inesperadamente. (Só poderia ser inesperadamente. Caso contrário todos viveríamos certos de que alguém está à porta à nossa espera, o que tiraria das campainhas sua razão de ser.)
Quem deus vult perdere, prius dementat – quem o deus quer destruir, antes lhe tira o juízo, em tradução frouxa. 
Não tem ninguém em casa, sou obrigado a atender. Antigamente deixava tocar até que o indesejável cansasse e fosse importunar o raio-que-o-parta. Mas nos últimos tempos dei para amolecer, fico ansioso que não me agüento. Talvez seja assunto inadiável, angustio-me. Algo que possa mudar o irrefreável curso dos meus dias. Notificação judicial. Morte na família (o que às vezes pode ser notícia alvissareira, dependendo do caso). 
E se for o sujeito que lê o relógio da luz? Dá ojeriza só de pensar – como são execráveis esses embaixadores dos serviços públicos. A última vez que deixei de atender, disseram, olha, na próxima vamos cortar o fornecimento.
Quem sabe é o carteiro! Esse, não sei como, parece conhecer a abjeção que tenho por quem incomoda os outros em sua própria casa. E – bem, pode ser apenas implicância de minha parte – faz questão de me entregar a correspondência em mãos. Mesmo quando não se trata de carta registrada que exija minha assinatura. Já lhe pedi mil vezes, meu amigo, passe por baixo da porta, mas ele, ladino, alega que o vão é muito apertado ou que o chão está molhado e pode borrar o conteúdo.
– Borrar o conteúdo? – estranhei quando ele me veio com essa a primeira vez.
– Sim senhor. Borrar o conteúdo! – respondeu com ares de técnico. E perorou: – Somos treinados a preservar a correspondência a todo custo.
Quando não é isso, ele espera até que eu atenda – mesmo que leve quinze minutos! – e ao me entregar o envelope, sussurra em tom confidencial:
– Talvez seja uma notícia de urgência urgentíssima.
Engulo tudo calado, temendo reagir e terminar na prisão por assassinato. Desenvolvi até uma técnica para conter minha sanha: me imagino numa cela, tendo nas mãos um jornal com a manchete “Carteiro é trucidado a pauladas por destinatário insano”. 
E se for parente? Sinto um calafrio ante essa segunda hipótese. Não se trata de força de expressão, não. É calafrio no duro, com arrepio na pele e tremedeira em todos os apêndices do corpo, incluindo a cabeça. O bom dos meus calafrios – e talvez os das outras pessoas também, não sei – é que são extremamente breves e não deixam seqüelas; caso contrário já estaria internado.
Ai, se for parente! Estremeço de novo, agora prevenido e portanto com menos desconforto.
Irritado comigo mesmo, me repreendo:
– Calma! É só uma possibilidade, não sofra por antecipação. Castanhola, por que essa cabeça sempre pensa no pior? Seja otimista uma vez na vida.
– Otimista o cacete! – respondo a mim mesmo. Detesto quando me tacham de pessimista.
A última vez que atendi ingenuamente à campainha… Jamais esquecerei.
Era domingo cedo. Estava sozinho em casa tal como agora. Todos viajando. Tendo acabado de acordar, enfiava os pés nos chinelos quando escutei BUUUUUUUUUUZ! (ou sei lá que som faz uma cigarra, buuuuuz deve ser inglês).
Me pus em marcha feito um zumbi (acho que foi por isso que me pegaram desprevenido). Mal imaginava que as três horas seguintes seriam as mais torturantes da minha vida. Parei diante da porta e sonambulamente girei a chave na fechadura. Puxei a maçaneta e dei de cara com uns parentes do interior que não via desde criança.
– Puxa, que grata surpresa! – exclamei (ou acho que exclamei, estava atordoado e não me lembro; de qualquer forma devo ter apelado para um desses chavões que todos usamos nessas horas).
– Vamos entrando, vamos entrando.
Quando penso no sorriso amarelo que se pregara ao meu rosto feito uma máscara, me espanta a coragem com que aquela gente não tomou conhecimento do meu estado de abulia.
– Por favor, não reparem na bagunça.
– Reparamos sim senhor! – Exclamou jocoso um fedelho no meio do rebanho.
– Tão pequeno e já espirituoso – consegui comentar, imaginando o fedepê pendurado num pau-de-arara fazendo piadinhas de seus próprios torturadores. – Vamos sentando aí, gente. Aceitam um cafezinho?
Claro, todos aceitavam, menos o guri, que preferia refrigerante. 
Não consigo recordar muitos dos detalhes daquele dia. Tudo se move num teatro nebuloso, borrado, marcado de cenas fortes entremeadas de vazios. Apesar dos meus esforços para esquecer, a memória, que tem vontade própria e não há o que a apague, teima em me trazer de volta o pesadelo.
Não tenho bem certeza se fiz e servi o café ou não. Pesando a probabilidades, tendo a crer que sim.
Mas definitivamente não me esqueço de quando me sentei numa poltrona para fazer a sala propriamente dita. Espremia o cérebro como se fosse uma esponja, procurando desesperado alguma tolice para dizer que não fosse demasiadamente tola, quando me dei conta de que não me ocorria o nome de nenhum deles. Pior: não me lembrava quem era quem, quem tinha morrido, quem estava vivo. Ficaria corado de vergonha se perguntasse pela mãe de alguém e me respondessem: “Esticou as botas faz dezoito anos!” Pior ainda: acho que a matutada percebeu, pois sequer uma vez um chamou o outro pelo nome.
Mas nem tudo estava perdido. Talvez por clemência daquele deus que vive querendo me deixar louco, no meio da cambada havia duas mulheres – acho que mãe e filha – que falavam pelos cotovelos (e, para minha sorte, não davam a mínima importância para o que eu dizia e nunca respondiam o que eu perguntava).
No fim, apelando para o pouco de imaginação que aquele mesmo ente divino me deu, logrei inventar algumas generalidades e engambelar a contento a caipirada. Chegou até uma hora em que parecíamos nos frequentar toda semana, tamanha a desenvoltura que fui adquirindo ao longo do Prozess. (Embora o maldito do moleque às vezes me observasse com ar de zombaria, querendo dizer: “a mim você não engana, sabichão!”.)
Assim fui levando a bugrada, sempre tomando o máximo cuidado para não ter de dizer um nome ao fazer uma pergunta ou me referir a alguém ausente. Finalmente – o finalmente mais esperado pelo qual já ansiei – chegou o momento da despedida. (Ai como invejo os felizardos com traquejo social suficiente para conduzir o martírio até o momento da despedida em apenas três minutos.)
Já na calçada, troquei com cada um aquelas gentilezas de despedida que todos sabemos de cor. Com a sinceridade com que nós seres humanos costumamos nos expressar em tais situações, desejei saúde, mandei abraços e, para minha própria perplexidade, até beijos. E ainda tive a pachorra de recomendar lembranças aos tios que não tinham vindo.
Fechei a porta e passei a chave na fechadura, temeroso de que os capiaus voltassem por algum motivo. Me encostei à parede da sala, soltando o ar dos pulmões. Teria ficado três horas sem respirar? Assustei-me. Se já existira situação que melhor ilustrasse a expressão “andar na corda bamba”, fora aquela. 
A campainha toca de novo. Inesperadamente! Carambola, será que nunca vou me habituar? Entro em pânico. Tento censurar minha própria cabeça novamente, mas desta vez não funciona – ela não responde. Ah, que falta faz um circuito de tevê para manter a entrada da casa sob vigilância.
Felizardos os militares de alta patente que têm guardas armados em suas portas. Felizardos os banqueiros que podem dispor de um bando inteiro de capangas para manter afastados os que não são bem-vindos.

Mas eu queria tudo isso e mais. Vigias, guaritas, circuitos de tevê e um canhão a laser para dizimar entregadores de gás, pedintes, visitas e intrusos em geral. Não, isso certamente daria cadeia. Melhor seria morar no Alasca. Ou no Kilimanjaro. Nas alvas neves do Kilimanjaro.