A cidade ideal 2

Os diligentes legisladores daquele exemplar distante país não se cansam de pensar em como minimizar o sofrimento e facilitar a existência dos seus representados. Nunca medem esforços para pôr as ideias engendradas por seus poderosos cérebros em prática por mais impraticáveis que possam parecer à primeira vista.
Certo dia, um deles, que é particularmente pródigo em soluções engenhosas, está saindo distraidamente da sala do cafezinho rumo ao salão de pôquer, quando de repente seus olhos se iluminam e ele exclama:
– Já sei! Já sei!
Atraídos pela manifestação espontânea de júbilo, três ou quatro parlamentares que no momento também transitam entre um salão e outro, sempre com as mãos nas respectivas virilhas para coçar o saco, vêm ter com ele.
– Já sabe o quê? – quer saber um.
– Tive uma ideia brilhante!
– Genial! exclama o presidente da casa, aproximando-se, também curioso com o extraordinário azáfama.
– Fenomenal! – ajunta um terceiro parlamentar.
– Incrível! – emenda um quarto.
– Assim a vida dos nossos queridos concidadãos ficará bem mais fácil! – comenta um sexto.
– Além disso – afirma o quinto, que sempre chega atrasado –, pode ser usado como um bom instrumento de libertação.
– É o que eu sempre digo! – desdiz a moça que trabalha de balconista. – Esse meu cafezinho é um verdadeiro elixir!
– Isso sem falar no meu bauru, que também não é nada mau! – garante o chapeiro sua participação na ideia.
Os parlamentares dirigem-se para o plenário, debatendo entusiasticamente a solução que de fato parece ter caído do anil céu daquele abençoado e exemplar distante país.
– E será que leva muito tempo para implantar? – pergunta o Laércio, representante dum estado do Sul.
– Que nada! – assegura o autor da ideia, abanando uma das mãos num gesto de desdém. – Oito anos e estamos conversados.
– Mas em que consiste, afinal? – quer saber outro parlamentar que estava cochilando e não pegara o início da conversação.
– É simples! Muito simples – diz a balconista, que acompanhara os parlamentares, trazendo nas mãos uma bandeja de canapés.
– Vamos começar separando – sugere o presidente.
– Sim – concorda o Laércio. – Se é para juntar depois, precisa separar antes. A não ser que já tenha sido separado no nascedouro.
– E qual será primeiro? Por nome, idade ou sexo? – pergunta um assessor dum dos parlamentares, que também é historiador numa universidade pública.
– O mais aconselhável, no início, é por nome – declara solenemente o guarda-costas Roberto, postando-se protetoramente atrás do parlamentar Almeida.
– Como assim, por nome? – quer saber o soneca.
– Que soneca é esse? – acorda o Amador.
– Como assim, separa? – adoça outro parlamentar que escuta a conversa enquanto se dirige ao mictório.
– Por exemplo. Qual é o teu primeiro nome?
– Jair.
– O seu, não. O dele, que estava indo ao banheiro.
– Jorge.
– E qual é o primeiro nome daquele fedepê da oposição que vive atrapalhando nossos projetos?
– Também Jorge.
– Pois então. Vocês dois morariam na mesma cidade.
Imaginando o novo quadro habitacional que se configuraria uma vez implantada a ideia, bem como as implicações em termos de novos projetos, novas licitações e novas inaugurações por aquele exemplar distante país afora, todos os demais parlamentares e os ouvintes repentinamente emitem exultantes gritinhos de êxtase, alguns coçando o saco com paixão ainda mais fervorosa.
– E como desenvolveríamos tal programa? – floreia o terceiro parlamentar, que aproveita para pegar um capuccino.
– Ah, isso é mais simples ainda. A gente monta dez comissões e pronto! – massageia o criativo legislador que teve a ideia.
– Só pra começar!
– Claro. Depois, mais quinze.
– Somando todos meus primos e cunhados, só eu ocupo trinta!
– E como seria implantado? – delicia-se o quinto parlamentar, que fora até o banheiro com o sexto e perdera parte da discussão.
– Igualmente simples. Mudaríamos os nomes de todas as cidades do nosso exemplar país.
– Agora entendi! – exclama o soneca, acordando. – Quer dizer que eu e aquele fedapê do Jair moraríamos na cidade dos…
– Jair, não. Jorge.
– Se não for o Jair, complica.
– Bom, é que ainda não cheguei até aí.
– Que tal dos paulos? – sugere o sétimo parlamentar, que se afastara momentaneamente para comissionar três das suas secretárias em seu acolchoado gabinete e pegou o bonde andando.
– Pô! – admira-se o terceiro parlamentar. – Dos paulos faz sentido. E onde morariam os ditos?
– Nos beneditos?
– Não. Os supra-mencionados.
– Bom, já que estamos retro-abalroando, podiam morar na cidade dos primeiros.
– E todos os josés morariam na cidade dos Albertos! – ajunta alegre o presidente.
– E as marias? Onde morariam as marias? – emerge o segundo parlamentar.
– Pô, essa é demais! “Onde morariam as Marias...” – poetiza um dos albertos.
– Bom, ainda não cheguei nas mulheres, mas...
– Sugiro das elizabetes! – estrebucha o Jair.
– Claro! – diz o soneca. – Ou na das terezas. O cidadão pode até optar. Democraticamente.
– E quem tem filhos, como faz? – responde o quarto parlamentar, que obviamente não pertence ao mesmo partido do presidente.
– Pô, vocês estão indo muito depressa. Vamos primeiro resolver os pais.
– E marido e mulher? Como fazem para morar juntos? – mumunha um dos funcionários encarregados de servir água aos parlamentares e que costuma atuar como conselheiro nos debates do congresso.
– Bem, aí a gente manda fundar cidades compostas – liga o técnico da telefônica, que também sempre dá uma ajudazinha nas deliberações quando vem instalar uns grampos no painel de votação.
– Claro! É tão simples – indaga o soneca.
– Por exemplo, cidade das tarsilas e onofres.
– Jardim dos alexandres e odetes.
– Vai ser um arraso!
– É – descompassa o Jair, com ar de doação ao caixa dois. – Sem querer tirar a azeitona do quibe de vocês...
– Da empada, você quer dizer – desmente o garçom.
– Já é hora do lanche? – inaugura o presidente da casa.
– Uns salgadinhos iam bem – pipoca o técnico. – Mas sem pimenta. Me dá azia.
– Se vai! Mal vejo a hora.
– Estamos bem-montados então – desconversa o presidente. – O Carlos, por ser o autor da ideia, guarda os presentes. O Jair aqui...
– Eu achava melhor separar por idade – jura a verdade o Roberto.
– Mas aí as pessoas teriam de se mudar à medida que envelhecessem – hipoteca o Maurílio.
– Porra, quem é esse Maurílio? – deslumbra-se o Amador.
– E esse raio de hipoteca? – mordisca o Afonso.
– Logicamente não, entretanto todos teriam a mesma idade.
– E se a gente separar por altura? – deposita na conta do paraíso fiscal o terceiro parlamentar, que se chama Castro.
– Sei não. Tem homem que só gosta de mulher mais baixa. Muitos teriam de namorar em outra cidade e voltar para casa à noite.
– Ou de manhã, dependendo do biótipo do sujeito.
– Então acho melhor que seja por grau de escolaridade – pendura o presidente.
– Zurrando nisso, preciso ir nadando em ouro. Vou ninfar uma turma de advogadas hoje de madrugada.
– Quanto amim, digo, quanto a mim, serei sacaneado pela metade daqui a pouco.
– Espera que eu vou junto. Preciso pôr uns grampos no teu gabinete.
– Já ia me esquecendo... começa o Arnaldo.
– Arnaldo?
– Alguém quer mais café? – suspeita o garçom.