O romance mais curto do mundo

(com ligeiríssimos toques machadianos)

Estou lendo O Anticristo, de Nietzsche. Me acho no trecho em que Friedrich cita a antinomia entre a moral nobre e a moral de ressentimento, tema tão caro ao sagaz pensador alemão.
O telefone toca.
Escuto os passinhos duros e ao mesmo tempo prudentes de Jair, meu mordomo, chofer, secretário e eunuco nas horas vagas, certamente rumando em direção ao aparelho. Interrompo a leitura por alguns segundos e apuro os ouvidos.
— Alô! — Jair diz no seu exótico sotaque que é uma combinação de cearense com gaúcho. — Sim, cavalheiro. Esta é a residência do senhor Vaccari. Ele está, sim. Só um minutinho, por gentileza.
“Filho duma puta!”, xingo mentalmente, fechando O Anticristo num gesto irado. Ergo os olhos, o eunuco está parado diante de mim.
— Eu não disse que não ia atender nenhum telefonema? — me exaspero, olhando duro para ele.
— Disse, sim senhor. — Tem uma vozinha metálica e ranheta. Sustenta meu olhar com áspera insolência. — Mas este é importante. Achei melhor o senhor atender.
Pela enésima vez me pergunto por que raios há oito longos anos aturo o Jair e sua turrice. Seguramente esta é a única relação patrão-mordomo / chofer / secretário / eunuco no mundo em que quem manda é o último.
Exalo o ar dos pulmões num bufo ruidoso e enfio as mãos nos bolsos da calças, vencido.
— Está bem, está bem! Quem é?
— O senhor Diogo Mainardi.
— E o que ele quer desta vez? — viro os olhos para o teto sem mover a cabeça.
— Uma entrevista.
— Diga que não tenho tempo. Que não tenho nada a declarar. Que não estou disposto. Diga qualquer coisa. Só me livre dessa fria.
— Agora é tarde. Já marquei. Amanhã às quinze horas. Em seu escritório. Com licença. — Ele começa a se afastar, mas para subitamente e faz meia-volta. — E, por favor, não se esqueça do cutelo que lhe pedi. Me recuso a continuar destrinchando com faca de manteiga o frango que o senhor tanto gosta. — Retoma os passinhos decididos e se detém uma segunda vez. — Não se esqueça, quero o cutelo mais pesado que houver no mercado. Hoje sem falta.
Sem esperar minha resposta, ele sai e encosta a porta.
“Filho duma puta! Filho duma puta!”, xingo mentalmente repetidas vezes, fitando de novo o teto, as cortinas, as poltronas enquanto me esforço feito um estivador para não avançar na garganta do Jair. Aquela combinação de sangue cearense e gaúcho havia gerado um monstro. Se eu não conseguisse despedi-lo breve, talvez fosse obrigado a matá-lo. Nessas horas sempre vem a calhar conhecer alguém do PCC.
Apalpo o bolso da minha blusa de casimira azul-turquesa e apanho o celular. Procuro na agenda o nome do Julinho, meu fornecedor de carnes.
— Alô, Ju. Eu. Tudo bem, obrigado. Estou precisando dum cutelo. Sim. Urgente. Ainda hoje. Manda entregar? Ótimo. Abraços.
* * *
Dia seguinte estou de novo refestelado em minha poltrona predileta, herdada de papai, e de novo às voltas com meu Anticristo. Acho-me naquela bela passagem em que Friedrich diz ”Há dias em que se apodera de mim um sentimento mais negro que a mais negra melancolia: o desprezo pelos homens.”
Esse trecho me deixa todinho arrepiado, por mais e mais que eu leia e releia. Nunca me acostumo. Quão... machadiano. Quão germanicamente graciliânico!
De repente, buuuuuuuz! A campainha. Tenho ímpeto de dizer “... da porta”, mas me contenho a tempo. Olho o velho relógio de corda, também herdado de papai, que há décadas descansa sobre o aparador.
Quinze horas em ponto. Além do mais, é pontual, o carcamano.
Mordendo o lábio inferior de raiva, atiro O Anticristo longe. O livro bate na parede oposta e cai atrás da cristaleira que era de vovô. Ainda bem que não bateu na porta de cristal. Na certa a teria estilhaçado.
Lá se vão os passinhos duros e ao mesmo tempo prudentes de Jair rumo à porta. Escuto vozes abafadas pela distância. Tento distinguir a voz de Jair e de Mainardi. Impossível. Ambos têm o mesmo timbre metálico e falam como se estivessem uma oitava acima do tom normal da voz humana. Mania de quem quer ser escutado a qualquer custo. Detesto gente sem modos.
Me ponho em pé, aliso a camisa e a calça, tento me recompor. Apesar da minha proverbial misantropia, não gosto de parecer desagradável. Meu lema é: aparências acima de tudo. Concordo com Freud em que temos a obrigação de preservar as convenções civilizadas. Seria muito fácil deixar os instintos aflorar e assistir de cadeira enquanto a aventura humana na Terra se desmanchasse feito borra de café no ralo em dia de enxurrada.
Toque, toque, toque. Os nós dos dedos de Jair batem na porta.
— Entre!
Jair entra e anuncia:
— O senhor Mainardi está aqui.
Diogo Mainardi entra em seguida. A primeira coisa que chama atenção nele é o olhar de ave de rapina domesticada, como se ele almejasse ser um impiedoso predador mas não tivesse tutano suficiente para isso. Dou dois passos avante e estendo a mão direita. Tenho os olhos pregados nos dele. À medida que se aproxima, ele vai olhando para ambos os lados, procurando fugir do meu olhar aceso e implacável. Tem os braços lassos ao longo do tronco, e só ergue a mão ao parar diante de mim.
Abro meu melhor sorriso amistoso. Ele ri intimidado. Nos damos as mãos. O aperto dele é artificialmente firme, estudado para impressionar. Fazemos o intercâmbio habitual de gentilezas, tapinhas nas costas, noto a barriguinha saliente dele, ele nota os primeiros fiozinhos brancos na minha barba à la Tolstoi, pergunto se tem visto o Gore Vidal.
— Depois que ele mudou da Itália, nunca mais vi. — Mainardi senta-se na poltrona à minha frente.
— Pelo menos se correspondem ainda? — Me dirigindo a Jair: — Traga dois cafezinhos, sim? — Me voltando a Mainardi — Você toma com açúcar ou adoçante?
Antes que o visitante possa responder, Jair se intromete:
— Café está proibido nesta casa. Faz mal para a pressão. Temos suco de maracujá ou chá de camomila.
Por uns três segundos fuzilo o famigerado com o olhar mais gélido e feroz de que sou capaz. Mainardi abre um sorrisinho divertido, ainda entretido com a acomodação na poltrona. Diz que prefere suco. Pigarreio, meio atordoado de raiva, e peço um chazinho para os nervos.
— Bem. — Abro os braços num gesto receptivo. — A que se deve a visita?
Mainardi limpa a garganta e explica:
— Lá na revista andamos conversando. Sabe como é, as denúncias contra o desgoverno peetista estão perdendo força, novos fatos atropelando os antigos. Então estávamos pensando se você poderia ir até o Planalto.
Antes que a atenta e amável leitora estranhe o termo “peetista”, devo esclarecer que é desta forma violentamente alusiva que defensores da democracia feito eu e Mainardi tratamos essa gente.
— Sei — limito-me a dizer, encarando-o pensativo. — Quer dizer, não sei, não. Planalto... olha, você me conhece, sabe que nunca tentei nada parecido.
— Claro, todos sabemos. — Mainardi ergue as mãos com as palmas voltadas para mim. — Mas, sabe como é, essa larga fama que você tem hoje em dia, essa experiência... O pessoal tá achando que talvez pudesse dar certo. Só você pra dar um jeito nas coisas.
— Modéstia à parte, você tem razão. Não vou negar que, de todos os Supernannies que há por aí hoje em dia, sou o melhor. Não foi à toa que fiquei conhecido internacionalmente.
— Não ia perder meu tempo vindo aqui se não soubesse disso. — Mainardi se levanta da poltrona e começa a zanzar pela sala, apreciando os quadros de Braque, De Chirico, Gris, La Fresnaye e Léger pendurados pelas paredes. — Das dezenas de milhares de candidatos a Suppernanny político, você foi o grande vencedor. Não é à toa.
De repente a porta da sala se abre num baque. Espantados, voltamos nossos rostos naquela direção. Jair está parado no umbral, ambos os braços estendidos ao longo do corpo. Na mão direita segura com firmeza o cutelo de destrinchar frango.
Antes que eu ou meu visitante possamos dizer algo, Jair dá três ligeiros passos rumo a Mainardi e desfere violentamente o cutelo no pescoço do brilhante carcamano terror do peetismo.
* * *
E foi assim, minha suave, prendada leitora, por força das mais inauditas circunstâncias, que este se tornou o romance mais curto do mundo. Não fosse o medonho assassinato impetrado em minha sala de visitas, as coisas teriam seguido seu curso natural, eu teria sido empregado como Supernanny no Planalto e muito provavelmente ensinado bons-modos aos primatas que ora nos governam e, com certeza, tirado o País do trágico fim que o destino lhe reserva.
Vou me abster de relatar o que houve imediatamente em seguida àquela cena de selvageria. Afinal, tudo ocorreu há alguns anos e não sou homem de me apegar ao passado.
Como óbvio está a esta altura, Jair era um peetista infiltrado em minha própria casa.
Foi uma pena. Estou certo de que meu abortado romance seria o grande vencedor do Prêmio Jabuti.
Não, não alimento vaidades. E não sou homem de me satisfazer com mimos mundanos desse tipo.


Um comentário:

  1. Babei de tanto rir com este texto, Poeta. Mais do que ri da primeira vez que o li lá naquela comú Literatura da Orkut, lembra?Com a diferença que dessa vez as meninas se empoleiraram aqui em volta de mim no maior alarido e tentando ganhar espaço pra melhor ler e se divertir com este texto do mais sutil e fino humor. Adorei. Mega super ótimo!

    ResponderExcluir