Todo-poderoso


A formiguinha, tracinho errante na imensidão da mesa, de tão minúscula só pode ser notada a meio metro.
Já cansado de me aborrecer comigo mesmo, decido aporrinhar a pobrezinha para ver se assim dissimulo o tédio. Aproximo devagarzinho o dedo e me ponho a intimidá-la — cerco-a alternadamente de um lado e de outro, deixo-a distanciar-se dois centímetros, torno a vedar-lhe o caminho.
Com espantoso instinto de perigo para um ser tão ínfimo, ela prontamente se arma da única defesa que tem a seu alcance: toma-se de súbito desespero e põe-se a girar freneticamente em todas as direções.
Vendo-a indefesa e torturada, comprazo-me. Por alguns instantes distraio o olhar impiedoso com que vigio dentro de mim mesmo. Não por muito tempo, bem sei. Mas bastante para vencer a perplexidade. Bastante para não pensar no meu próprio beco sem saída.
Entusiasmado com meu sucesso, acerco ainda mais ominosamente o dedo da infeliz e em pensamento a desafio:
— Chegou tua hora, serzinho à-toa! Tua inútil existência depende inteiramente da minha deliberação. Sou agora teu juiz, teu verdugo, teu padre, teu médico, teu deus. Quem diria, hein? Quando nasceste seguramente não imaginavas que teu duvidoso e incerto direito de existir cairia nas mãos dum gigante prepotente. E agora? partícula de vida! Quem sabe consigas me convencer de que deixar-te passar seria um ato nobre de minha parte, demonstração de complacente sabedoria. Ou de que devo tolerar tua claudicante perambulação por minha mesa. E agora? coisinha petulante que tão galhardamente refestela-se com as migalhas do meu pão, dando teus indiferentes passinhos no eterno azáfama com que exploras o mundo do ser superior.
Aperto o cerco, roço-a com a ponta da unha. Eletrizada, zonza de comoção, ela executa a dança da dor. A natureza lhe deu várias habilidades, menos a de convenientemente sofrer um enfarte ou desmaiar de pavor ante a iminência do fim.
Comiserado de tão cruel padecimento, espeto negligentemente o dedo sobre ela, esmagando-a.
Afinal, como pode uma porcariazinha dessas ter tanto medo da morte?


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