Um mamão lava a outra

Silenciar: o meio mais prático e indolor e covarde de aceitar a injustiça.
A hipocrisia só se estabelece a dois, ou mais. É uma moeda de troca. Quando está sozinho, o hipócrita ilude apenas a si mesmo. A hipocrisia solitária é mais ou menos como dispor de dinheiro sem ter onde ou como gastá-lo. Torna-se assim meio que inútil. Um bom exemplo seria alguém a vagar num deserto, delirando c’uma garrafa de coca-cola gelada enquanto sente no bolso a carteira recheada de grana. É na presença de outro que o hipócrita efetivamente se realiza. Sem o outro não podem intercambiar a única coisa que têm em comum. E quanto mais hipócritas juntos houver, maior será o valor da hipocrisia. É nesse tipo de convenção que o hipócrita individual se congratula – conscientemente ou não – de ter investido a vida toda na arte da (dis)simulação. O que importa é enganar o senso de solidão.
O hipócrita procura sempre se afastar o máximo possível da verdade. Para ele a distância lhe parece tão natural, que muito cedo na vida ele perde a noção do que seja a verdade e qual seria seu propósito. Quando ainda conserva dentro de si algum resquício da verdade, o hipócrita ainda tenta aplicá-la em certas situações de seu dia-a-dia. Mas logo desiste – tais tentativas sempre resultam em dor, frustração e, horror dos horrores, conflitos interpessoais! O hipócrita acha que conflitos com outras pessoas são o fim do mundo e aos poucos – dependendo do caso, instantaneamente – decide que não vale a pena. É então que o hipócrita chega ao Grande Lema da Hipocrisia: pra que sofrer à toa se podemos todos ser relativamente felizes encenando uns pros outros? E o que ainda resta da verdade assim se esvai pelo ralo de sua consciência e da consciência de seus pares.
E dá-lhe convenção. É curioso como os hipócritas gostam de se reunir. Praticamente vivem para comunhar. É solenidade, festa de aniversário, casamento, enterro, um joguinho de dominó no buteco, um convescote no fim da tarde com colegas de trabalho. Até que nos últimos tempos lograram realizar a quintessência das convenções, a Mãe dos Congraçamentos. Bidu: as chamadas redes sociais, pracinhas de igreja de antanho multiplicadas por uma dimensão infinita onde bilhões de hipócritas se juntam para medir a hipocrisia uns dos outros.
E aqui recomeçamos o ciclo. A hipocrisia é uma moeda de troca. É uma espécie de paraíso em que as individualidades entram em suspenso para ceder lugar ao Grande Angu Coletivo. Após alguns exercícios de prática nessa modalidade, o aprendiz de hipócrita estará prontinho para se liquefazer como indivíduo em nome do bem comum. Daí a desenvolver o bom-senso é um passinho de bebê. É o bom-senso que distingue o hipócrita das demais classes de viventes.

Um comentário:

  1. Em suma, todo agir que é compreendido, admirado e, exagerando um pouco, idolatrado é hipocrisia, né mesmo poetíssimo?Se for ver bem a verdade mesmo, a grandeza está naquele incompreendido. Por isso tenho o maior orgulho de uns e outros que me são próximos, sabe.

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