Aquele
vizinho gostava de escutar música erudita. Não porque fosse erudito ele mesmo.
Estava mais pra diletante. Esnobe não era. Quer dizer, era. Mas não muito.
O problema é
que os vizinhos daquele vizinho não sabiam que tinham um vizinho diletante, muito menos
que o mesmo — ninguém mais senão o próprio — se amarrava em música erudita.
Para aquele
vizinho, escutar, digamos, um concerto de Brandenburgo, um noturno ou uma
mazurca, uma sonata ou mesmo uma abertura operística ou uma ária — não
esquecendo um trecho de Tristão e Isolda ou uma fuga de Haydn —, mais do que um
prosaico ato de fruição estética, era uma verdadeira cerimônia cosmológica, ritual
sagrado que às vezes incluía requintes como uísque importado em copo raso de
cristal com gelo de água também importada, um livro de Rilke ou outro gênio
germânico à mão (ou pelo menos ao alcance dos olhos, só para sentir-se seguro e
mesmo para mostrar aos espíritos alemães que ele não estava para brincadeira).
Naquela
manhã de domingo, aquele vizinho, como fazia todas as manhãs de domingo, saiu
para o jardim e deu início aos preparativos de mais uma sessão de "contato
com a arte superior", como gostava de pensar. Selecionou meia dúzia de
cedês de sua estupenda coleção da chamada música clássica e depositou-os
cuidadosamente ao lado das caixas quadrifônicas. Abriu o porta-gelo e deixou
cair exatamente três pedras dentro do copo, divertindo-se com o suave tilintar
produzido pelo encontro com o cristal. Com um sorriso indefinível nos lábios,
apanhou a garrafa do escocês legítimo, desatarraxou a tampa, aproximou o bico
da garrafa das narinas para sentir o buquê, apanhou o copo, elevando-o à frente
dos olhos embevecidos, lado a lado com a garrafa, e mediu-os como que imaginando um concurso de beleza entre Dionísio e Baco. Quando pareceu dar-se por satisfeito, emborcou esta última, zelosamente despejando sobre o gelo três metódicos dedos de "chá de
malte", como gostava de chamar o elixir.
Assim
munido, copo na mão direita, livro na esquerda, rumou para o centro do gramado.
Depositou os valiosos apetrechos sobre uma mesinha de madeira e instalou-se
confortavelmente em sua cadeira preferida. Fechou os olhos e prestou atenção
nos sons do jardim.
Não, não era
um jardim. Era um pedaço encantado do mundo, especialmente desenhado para os
que são sensíveis, com leves pinceladas de rosas, petúnias, gladíolos e tulipas
multicores aqui e ali, hibiscos, alamandas e lágrimas-de-cristo de todas as
cores, pitangueiras, amoreiras e limoeiros de todos os cheiros — cada elemento
formando um todo mágico de perfumes e recantos que, por sua vez, escondiam um
pequeno universo de maviosa harmonia. De tão belo, o jardim amiúde era objeto
de inveja dos seus vizinhos, que sequer tinham um jardim, muito menos um
paradisíaco feito o seu.
Em estado de
graça com o chilrear dos pássaros e o farfalhar das folhas, abriu os olhos, mas
continuou sem enxergar, pois as coisas lá fora não existiam. Seu mundo agora
era uma fonte que brotava de dentro, deixando-o alheio, arrebatado até a raiz
dos cabelos (que, por força da idade, já escasseavam no alto da cabeça).
Aprumou-se
elegantemente na cadeira — pois, sabia, mesmo embevecido cumpria manter a
compostura. Como sempre, sentiu orgulho do modo como sempre soubera combinar
senso artístico e disciplina. "Enfim pronto", pensaria se estivesse
em poder dos próprios sentidos. Mas, também como sempre, não estava. Foi capaz
apenas de abrir o dedo indicador da mão direita e aproximá-lo da tecla play do
toca-cedê. Pousou a ponta do dedo no aparelho, fruiu pela enésima vez o enlevo
do pré-êxtase... de repente, em alguma das casas nas proximidades, explodiu um
acorde de guitarra elétrica. E xitãozinhoexororó imperou triunfante.
Chorei de rir, meu Deus me acuda!
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