O usuário



Literalidades

Seis e meia da manhã. O usuário acorda. Levanta da cama. 
Põe os chinelos.
Seis e quarenta. O usuário esquenta o leite. Corta o pão, passa manteiga, come, toma o leite. Limpa a boca com um guardanapo de papel. Arrota.
Se trabalha fora, o usuário sai. Senão, o usuário liga o rádio.
Se tem carro, o usuário que trabalha fora vai para a garagem. Abre a porta da garagem, entra no carro, dá partida, tira o carro, desce do carro, fecha a porta da garagem, volta para o carro, entra, engata a primeira e arranca.
Se não trabalha fora, o usuário que não trabalha fora vai até a cristaleira da cozinha, apanha o rádio, liga e procura uma estação. Sintoniza. Faz careta. Sintoniza outra. Faz mais uma careta. Escuta uma notícia. Desliga o rádio. Repõe o rádio na prateleira. Dá meia-volta e vai para a sala. Senta na poltrona. Pega o controle remoto. Liga a tevê. Aperta um botão, mudando de canal para cima. Chega no topo. Aperta outro, mudando de canal para baixo. Vê uma notícia. Desliga.
O usuário que trabalha fora pára no farol. Um pedinte se aproxima. O usuário que trabalha fora levanta o vidro. Dispensa o pedinte com um abano da mão. O farol abre, o usuário que trabalha fora engata a primeira e arranca. Um outro carro corta seu caminho. O usuário que trabalha fora breca. Buzina. Xinga. Buzina. Esbraveja. Buzina de novo. Outra vez. Mais uma. Pára no farol. Engata, desengata. Dispensa. Levanta. Abaixa. Buzina. Xinga. Breca. Arranca. Liga o rádio. Procura uma estação. Escuta alguns instantes. Muda de estação. Escuta alguns instantes. Desliga o rádio. Resmunga.
O usuário que não trabalha fora levanta da poltrona. Vai até a janela. Pousa os braços no parapeito. Olha em algumas direções. Fita alguém passando na rua. Volta o olhar para uma pomba na calha. A pomba arrulha. Cata os próprios piolhos. Percebe a presença do usuário que não trabalha fora. Se assusta. Voa. O usuário que não trabalha fora olha para o céu. Abre um bocejo, fecha um punho, tampa a boca com o punho fechado. O usuário que não trabalha fora desiste de olhar pela janela. Dá meia volta. Vai até a estante da sala. Apanha um livro a esmo. Olha a capa. Lê o título. Reflete alguns segundos. Abre o livro a esmo. Lê um parágrafo. Reflete. Lê outro. Reflete. Lê alguns parágrafos. Boceja de novo. Tampa a boca com o punho de novo. Fecha o livro.
O usuário que trabalha fora dá seta para a direita. Põe o braço fora da janela e abana a mão, indicando que está reduzindo a velocidade. Sobe na calçada. Um pedestre passa. O usuário que trabalha fora buzina. O pedestre xinga. O usuário que trabalha fora xinga de volta. O pedestre sacode o braço. Xinga. O usuário que trabalha fora resmunga. Acelera. Entra no estacionamento. Pára na guarita. Põe ponto-morto. O atendente do estacionamento mumunha bom-dia. O usuário que trabalha fora mumunha de volta. O atendente digita algumas teclas. A máquina registradora emite um silvo, depois um apito, depois relincha, depois zurra. Produz um tíquete. O atendente arranca o tíquete da máquina e entrega ao usuário que trabalha fora. O usuário que trabalha fora engata a primeira. Acelera. Arranca. Breca. Encaixa o carro numa vaga. Põe ponto-morto. Puxa o freio de mão. Desliga a ignição. Tira a chave. Sai do carro. Abaixa-se em direção ao banco traseiro e apanha uma valise. Bate a porta do carro. Tranca. Ruma para os elevadores. Aperta um dos botões dos elevadores. Aguarda.
O usuário que não trabalha fora volta para o quarto. Tira a blusa do pijama. Tira as calças do pijama. Apanha umas calças que estão jogadas sobre uma cadeira. Veste as calças. Abre a porta do guarda-roupas. Apanha uma camisa. Veste. Calça meias. Depois, sapatos. Sai do quarto. Dirige-se à porta dos fundos. Abre a porta. Sai. Fecha a porta. Ruma para a edícula. Abre a porta da edícula. Entra. Fecha a porta. Sobe as escadas. Entra numa sala. Senta-se a uma mesa. Liga o computador. Aguarda. Empunha o mouse. Clica uma vez. Clica uma segunda vez. Clica uma terceira vez. O processador de textos é aberto. O usuário que não trabalha fora apruma as costas, ajeita-se na cadeira. Digita.
O usuário que trabalha fora entra no elevador. Diz bom-dia. Sai do elevador. Ruma para sua sala. Abre a porta. Entra. Fecha a porta. Tira o paletó. Pendura o paletó num gancho na parede. Senta-se à sua mesa. Liga o computador. Aguarda. Empunha o mouse. Clica uma vez. Clica uma segunda vez. Clica uma terceira vez. O processador de textos é aberto. O usuário que não trabalha fora apruma as costas, ajeita-se na cadeira. E digita:

Prezado cliente, nossa empresa está colocando em oferta vários produtos. Lurdes, nunca pensei que você me deixaria. Esta é a sua oportunidade de ganhar. Lembra quando você foi receber o título de doutora honoris causa, lembra? Nosso sistema de conferência de estoques é único no mercado. Sei lá, me acostumei a pensar que sermos um do outro era a coisa mais natural que podia existir. A instalação do sistema é simples, bastando acessar o painel de controle dos programas ou a opção do grupo de programa de aplicação. Lurdes, depois de tudo que passamos juntos, essa “lista dos meus defeitos” que você me apresentou foi um baque para mim. Se o sistema que você está usando atualmente não resolve todos seus problemas, use o recurso de adição/remoção para ver quais são as aplicações suportadas Olha, Lurdes, não me resta outra alternativa. Você pode também ver uma lista dos produtos que fazem parte da nossa rede. Essa lista foi o fim da picada. No Windows, tecle em “Iniciar Cópias” para copiar o número desejado de listas. Quando te vi a primeira vez, na janela da tua casa... Abra a janela “Conexões atuais” e clique no respectivo link. No dia seguinte te liguei. Lembra? Os recursos de telefonia dos nossos aplicativos são suportados por todas as redes. Liguei e fiquei esperando, sem falar. Mas você viu que era eu. Todas as aplicações suportadas instaladas podem ser visualizadas pelo usuário. Fiquei alguns minutos sem falar, só ouvindo tua respiração excitada, depois sôfrega, cada vez mais sôfrega. Você pode ter a certeza de que nossas soluções serão o fim das suas dores de cabeça. Agora vem me acusar de egoísta depois de tudo que fiz por você? Ora, faça um exame de consciência e diga se estou errado! Oferecemos um projeto abrangente e criterioso, que inclui um detalhado exame das suas perdas. Lurdes, no fundo eu sabia que ainda teria de passar por esse processo. O processo pode ser ligeiramente diferente dependendo da sua versão. Afinal, por que essa repentina aversão a mim? Envie um e-mail ainda hoje! 

O usuário que não trabalha fora clica o botão “Enviar”. Aguarda. Desliga o computador. Levanta da cadeira. Sai da sala. Sai da edícula. Vai para a casa. Abre a porta da casa. Entra. Fecha a porta. Vai para a sala. Apanha o controle remoto. Deixa-se cair no sofá. Liga a tevê. Assiste.
O usuário que trabalha fora clica o botão “Enviar”. Aguarda. Desliga o computador. Levanta da cadeira. Sai da sala. Vai para os elevadores. Aperta o botão. Entra no elevador. Desce. Sai do elevador. Vai para o estacionamento. Entra no carro. Dá partida. Engata. Manobra. Devolve o tíquete. Acelera. Ganha a rua. Vai para casa. Estaciona na garagem. Sai do carro. fecha a porta. Fecha a garagem. Sobe a escada. Abre a porta da casa. Entra. Fecha a porta. Vai para a sala. Apanha o controle remoto. Deixa-se cair no sofá. Liga a tevê. Assiste.



Um comentário: