Literalidades
Estou confortavelmente sentado em minha poltrona na
varanda. Já está pela metade esta aprazível manhã de outono, a menos ameaçadora
das estações. Nas mãos — um tanto trêmulas, devo notar — tenho um pequeno livro
com algumas das pitorescas fábulas de Oscar Wilde. Acho-me exatamente no trecho
em que a lagartixa esverdeada, a borboleta e a margarida perguntam-se por que
chora o estudante.
Nisso pousa um bem-te-vi na balaustrada, entre as
várias espécies de samambaias cyatheaceae, dicksoniaceae e polypodiaceae que,
pendentes de ganchos com fios dourados e vermelhos, adornam cada canto do meu
jardim.
A ave faz um pequeno rebuliço entre as folhas,
querendo chamar minha atenção. Reluto em olhar para o bem-te-vi, pois a linha
em que estou na fábula não é outra senão aquela em que a lagartixa faz troça
das lágrimas do estudante e seu motivo banal.
— Bem-te-vi! — ele entoa implacável, como se fosse
dotado dum timing estratégico.
Exalo o ar dos pulmões, irritado com a interrupção.
Fecho o livro de supetão, produzindo um estampido abafado e calando o glorioso
diálogo entre o estudante, a lagartixa, a borbola e a margarida.
— Bem que viu o que, meu amigo? — Ergo os olhos
para ele e bufo novamente. — As árvores, os sabiás, o telhado, as nuvens? Que
foi que você viu?
— Bem-te-vi! — repete o bestinha, revirando
mimicamente os olhos atônitos, semi-girando o pescoço para ampliar o campo de
visão feito um radar acelerado, inspecionando-me desconfiado com aquele
olharzinho lateral.
— Fale duma vez que foi que você viu! — Aperto os
lábios, impaciente. — A poluição do ar? As ratazanas que tomaram conta do forro
da casa? Os meninos da vizinhança fazendo troca-troca? A Soninha ali da esquina
pagando um boquete para o namorado? Que foi que você viu, sua antinha alada?
— Bem-te-vi! Bem-te-vi! — sapeca o miserável em
resposta, armando, sacudindo e recolhendo as asas, auscultando os arredores com
alarme ainda mais agudo. — Bem-te-vi! Bem-te-vi!
— Pelo amor dos oculistas, viu o quê? — vocifero,
deixando definitivamente o fleuma com que em geral enfrento problemas
imprevistos. Espalmo as duas mãos na direção do solerte e reitero: — Doentes
abandonados nas portas dos hospitais? Cadáveres insepultos nas quebradas da
cidade? Presos pendurados em paus-de-arara nas delegacias? Políticos despachando
dólares para as ilhas Caimã? Desembucha logo, maldição matutina!
— Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Atiro de lado o livro e me ponho em pé. Dou três
passos duros e ameaçadores na direção do infame. O pássaro estufa o peito,
entreabre as asas em menção de alerta, mas não foge. Paro e cerro os punhos,
fulo.
— Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! — ele desafia.
Tampo os ouvidos procurando evitar a toada medonha.
Explodo:
— Viu o que, demônio? Um furacão chegando? A terra
se abrindo? A tempestade definitiva? O fim do mundo?
— Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Atordoado com o cântico ensandecido e ainda com a
fábula de Wilde escorrendo pelos poucos neurônios que me restam depois de todos
esses anos de especulações vãs, olho em torno do jardim buscando um espinho.
Decepcionado, lembro tardiamente que não cultivo — jamais cultivei — rosas.
— Bem-te-vi!
— Espera, que já te ensino — murmuro não para ele
mas para mim mesmo, já alucinado pelo assobio que me estremece a alma e me
encharca a camisa de suor e me gela o estômago. Dou meia volta e entro em casa,
deixando o atazanado a martelar o hino infernal.
— Bem-te-vi!
Volto alguns minutos depois, trazendo a caixinha
aveludada que ganhei de meu pai ainda na infância. Retiro cuidadosamente a
tampa e pinço, entre o polegar e o indicador, o alfinete de ouro. Para
experimentar a eficácia da ponta do alfinete, lanceto ligeiramente a ponta de
um dedo da outra mão e um furinho se abre. Ui! Uma gotícula de sangue brota da
pele e pinga no piso de cerâmica da varanda.
— Bem-te-vi!
— Agora sei o que você viu — digo mansinho, me
aproximando.
Num gesto rápido e certeiro — fruto do treino de
longos anos acaçapando pernilongos no ar —, minha mão esquerda dá um bote e
engolfa o atarantado. Meu punho se fecha firme em torno dele. Esse não me
escapa.
Ele vira o bico para a entrada da varanda, de modo
a fixar o olho direito em mim. Estranhamente, não se debate na tentativa de
escapar.
Com o alfinete ainda pinçado entre os dedos,
aproximo as duas mãos e espeto. Primeiro, o direito. Depois, o esquerdo. Ele
não resiste. Lanço o braço no ar e abro o punho. Ele tenta um voo rasteiro, até
colidir com o muro onde vicejam meus brincos-de-princesa
São tão belos estes textos todos, viu Wil, que dá até nostalgia na gente Dá uma saudade de casa
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