Por ora, untitled

Comecei a acordar assim que caí no sono. A consciência vem e vai. Cacos mnemônicos se misturam a migalhas oníricas e xarope de groselha para formar a Grande Geleia Fugaz. Sempre que escrevo algo sob as novas regras ortográficas me dá vontade de espinafrar a famigerada reforma, mas não vou perder tempo com isso agora. Gasto energia demais com bobagens que, por preguiça de pensar, acho importantes. São bobagens porque estão fora do meu alcance. E, sobretudo, por não afetarem diretamente meu mundo. Meu mundo, donde tirei isso? Não tenho mundo. Meu mundo é o mesmo mundo de todos eles, queira eu ou não. Tenho essa mania de me achar um indivíduo, mas sou idêntico aos outros bilhões que pululam neste charco de formol. Sou geneticamente implicante. Os outros me fazem mal, o mundo me faz mal. E acabo levando psicossomaticamente. Boio uns segundos, suficientes para ver assomar aos poucos lá longe o cais da consciência enquanto subo e amo e desço e grunho e visto o terno de tergal chumbo que usei no meu casamento com a Sílvia e afundo até o piso da fossa abissal.

Comecei a dormir assim que a Soninha ligou a tevê. Pouco antes de perder a consciência me aconcheguei no volume macio e cheiroso estendido ao meu lado e, semiacordado, comecei a sonhar com a Sílvia, depois com a Nancy, depois com a Ivani, depois não me lembro. Sou um lenhador ou algum outro trabalhador braçal e mantenho minha dúzia de mulheres em pé amarradas de costas para uma parede. Nuas, de pernas semiabertas. Logo antes de sair para o trabalho e logo depois de voltar do trabalho, penetro-as. (Não vou abrir parênteses hoje, por favor. Penetro-as e pronto.) Elas não parecem gostar ou desgostar. Simplesmente ficam lá peladas em pé esperando que eu as cubra uma a uma, consecutivamente, sem saltar essa ou aquela nem me demorar mais ou menos com aquela ou essa. Às vezes, sei lá por que cargas d'água (preciso escrever sobre as delícias de usar expressões idiomáticas), lasco uma beijoca numa. Mas sem espalhafato. Ou intenção de causar inveja às demais. É simplesmente um beijo, sem deferência, afeto ou segundas intenções. E, quando dou um beijo, é na bochecha ou no pescoço. Nunca na boca. Também tenho meus nojos.

Então sinto a Soninha massageando meu pau. Na tevê o carinha das Casas Bahia quer que eu pule da cama e saia correndo até a João Pessoa, Sanca, para garantir até sábado meu jogo de cozinha e um rádio-relógio de brinde. Agora lembrei -- a Soninha desligou meu rádio-relógio, sempre sintonizado nos 105,9 Mhz da Cultura FM para assistir a novela da Globo. Queria escrever sobre essa praga nacional, mas está além do meu estômago. Um pesado manto de perplexidade se abate sobre meu intelecto e, inerme, apago. Quando digo que não suporto novela a Soninha me olha como se eu estivesse numa jaula do zoológico.Certa vez comecei a explicar, pensando em mencionar coisas como previsibilidade, redundância, maniqueísmo, mas vi que ela desligou na terceira palavra. Novela, qual religião e Deus, é antiintelecto. Questão de fé.

Pronto, estou uns setenta por cento acordado. Ela desiste de me ressuscitar e aumenta o som da tevê. Choraminga. Que não quero fazer sexo. Que não gosto mais dela. Por que é que caí tão rápido daquelas quatro ou cinco gozadas por noite para o mais lasso abandono. (Não exatamente nestes termos. E não foi tão rápido quanto possa parecer.)

Meu amorzinho, a culpa não é sua. (Vai explicar uma coisa dessas a uma mulher.) Estou passando essa fase difícil, entenda. Logo volto ao normal. Assim que superar a separação da Sílvia. O doutor Gê diz que é assim mesmo. Tenha paciência.

Ela vem insistindo para que eu tome viagra. Nem sonhar -- meu primo Ozório morreu de pau duro depois de quase matar minha prima Leninha numa sessão ininterrupta que, alegam os dois filhos, durou mais de seis horas.

Para evitar que a noite acabe num desenxabido anticlímax, peço que me conte mais uma vez como foi sua transa com o Lacerda no quartinho dos fundos do boteco. Como todo bom fantasista, sou um incorrigível voyeur.

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