Não é homenagem a Fingal Wills

Quero me trancar num quarto sem portas ou janelas. (Você pode estranhar como é que eu entraria num quarto sem portas em primeiro lugar. Estranhe.) Nenhuma mobília. (Que tipo de móveis ia querer, afinal? Uma mesa de centro para receber as visitas que nunca recebi e nunca receberei?) Nem tapetes. Ou quadros.

(Já não estou? Não estive sempre?)

A única coisa que haverá no quarto, além de mim, é um antigo relógio pendurado numa das paredes. (Talvez aquele relógio de parede fabricado no dia em que nasci.)

O relógio não terá ponteiros. Mas terá um pêndulo. (Este é tão inútil quanto aqueles. Mas o relógio terá de ter algo que me distraia. Distração é tudo que busco.)

Se estiver numa das minhas fases de Mallarmé, pararei por aqui, deixando abertas todas as possibilidades de interpretação.

O pêndulo cumpre seu curso conhecido -- alguns centímetros para cá, os mesmos centímetros para lá.

Ah como são obedientes os pêndulos.

Não existe risco de surgirem à frente dele atalhos, encruzilhadas ou acidentes. Exceto no meu pêndulo. Que não quer outra vida. Que não suportaria outra vida.

Ao atingir o extremo esquerdo, o pêndulo fará tique.

Ao atingir o extremo direito, o pêndulo fará taque. (Ou poderá ser o inverso. Nada tem grande importância.)

Ah como são obedientes os pêndulos.

Você sabe, o tique-taque dos relógios é apenas uma convenção. Os italianos, veja só, chegam ao cúmulo de chamar de "ticchettio" a voz do pêndulo. Que doidos.

Atualmente estou mais para Pavese, mestre da angústia explícita, que se viu na obrigação de cometer suicídio para que não restassem dúvidas.

Não saberei de fato que palavras pronunciará meu pêndulo. Ninguém sabe que palavras pronunciam os pêndulos.

Dependendo da testemunha, pode ser a própria epifania. Ou uma risadinha do diabo. Para os filólogos, não passa duma onomatopéia.

Ali naquele quarto sem portas ou janelas o tique-taque tique-taque tique-taque do pêndulo poderá ser melífluo. Se eu quiser. Se eu puder.

Certos românticos pretendem que o coração também faz tique-taque. Que doidos. Só se quando não bater mais.

2 comentários:

  1. Suas palavras são de ideias singulares e fluidez incrível. Uma amiga sugeriu seu blog, e resolvi conferir, o que não costumo fazer (por, geralmente, sempre me decepcionar com o que encontro); mas, só pela disposição das palavras, pela instantânea leitura de frases esparsas, de maneira aleatória, que agrada aos olhos e à mente antes mesmo que se perceba pelo consciente, fui cativado de imediato. Para comprovar a boa impressão inicial, faz-se sublime, por completo, este texto. Espero encontrar tantos belos parágrafos aqui quanto não os encontro com tantas outras errôneas tentativas, que me levam apenas a palavras cheias de boas aparências, mas vazias de significado.

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  2. Faz tempo que não sinto orgulho de nada. Agora senti. Obrigado.

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