Mini-odes à solidão perdida

Quando ela foi embora, fiquei 2 dias cheirando as calças do pijama que ela deixou cair atrás da cama, misto de mijo e buceta, ausência e presença, tudo e nada, vida e morte, luz e escuridão, um plenipotenciário eu, uma espectrosa ela.
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Ela me olhou sem saber que eu não era eu.
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Ela me olhou fingindo não saber que eu não era eu.
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Os cientistas estão inventando o plástico degradável. Bem que podiam ser imitados por religiosos e filósofos inúteis, que inventariam a alma degradável. Imagino minha alma jogada no lixão das almas, apodrecendo ao sol enquanto abutres a destrincham, não sei se sinto nojo ou what.
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Indo para a escola, não sabíamos que nossos caminhos estavam traçados, nossos destinos, decididos. Os inteligentes e disciplinados estavam fadados à diretorias de empresas. Os inteligentes e indiscipliandos, à tragédia. As meninas de rosto angelical e gostosas, a derreter corações de homens frustrados.   Quanto a mim, saía a toda hora do meu caminho para pisar no dos outros, preantecipando a miríade de destinos que nunca soube aceitar – sou por demais ambicioso.
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Estou sempre isolado em algum lugar do tempo porque perdi aquele dia em minha vida e não posso mais me compatibilizar com os outros
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Descobri que morro de nojo de mim, tenho auto-repulsa, não posso me olhar no espelho, não suporto esta minha cara de chorão sacana.
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Sou covarde. Sou mentiroso. Quero escrever um livro mas não tenho a mínima condição. Você pode achar que me inspirei na introdução dos cadernos do subterrâneo para escrever isto. Sim. Se é que se pode chamar isto de inspiração. Não tenho inspiração nem talento. Nem ler sei. Sabe quantas páginas de Proust li? Examente 87. Faz 25 anos. De lá pra cá todo santo dia me xingo dizendo que preciso retomar a leitura. Ulisses, li inteiro, pulando de 10 em 10 páginas. Como escrever desse jeito? Você pensa que descendo de espanhóis cruéis que dizimaram nações indígenas inteiras, ou portugueses que desbravaram este país quase até o sopé dos Andes? Nada disso. Sou apenas um filhote de carcamano com os sentidos embotados de carnaval e embriagado de pinga envenenada.
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Quer experimentar a sensação de uma passada em Auschwitz? Quanto tempo? 1 minuto, 1 hora, 1 dia, o resto da vida?
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A merda de usar isqueiro é que não dá pra coçar o ouvido.
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Sou mais feio que barata de perfil. Mais complicado que abrir pacote de bolacha pelo fiozinho. Mais difícil que publicitário virar bom escritor. Mais cara de pau que dentista quando dá orçamento.
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Só consigo dormir ouvindo uma rádio chinesa, qualquer língua que não compreenda, enlevado pelo fluxo bestial das palavras sem sentido.
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Quero psicografar Plath. Faremos o maior poema jamais versejado. Preciso dum terno escuro. Ela vai respondendo através dos seus versos. A vida não tem undo. Forno a gás não tem undo.
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Quero escrever um livro que vire road movie. Minha road é meu caminho para o buteco. Você não imagina quão insondável o destino de cada viagem pode ser.
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Por que nossos escritores são tão insignificantes? Sempre fugindo da luta contra o mal para cair numa metafísica infantil e estéril? Metafísica sem espelho não rende. A “nossa” metafísica é a que nos é imposta. Não podemos simplesmente forjá-la só para provar que somos diferentes, que temos alma. Que graça tem o escritor que vira ermitão para se dedicar a escrever? Soará tão falso quanto aquele que se muda para Paris para escrever às margens do Sena sob o formidável peso da história europeia. Ascese não é sinônimo de consciência. Escritor é quem não foge do dia a dia. Se enfurnar numa biblioteca em meio aos grandes não vai abrir as portas mágicas da percepção.
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Cada um de nós cedo ou tarde chega àquela hora em que temos certeza de que nunca mais seremos capazes de escrever um parágrafo sequer?
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O mundo parece dormir. Não me resta ninguém a quem acordar.
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O fumo contém arsênico, que, vejo na embalagem, compõe a fumaça que aspiro tão sofregamente para dentro dos meus podres pulmões? Guardam meus pulmões em suas profundezas um tumor maligno que aguarda seu melhor momento para dar o ar de sua graça e enfim me aniquilar? Ou se resumirá o segredo da longevidade a simplesmente manter nossos fanstasmas em seu sono profundo?
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Nada mais chato que alguém com pretensões poéticas querendo parecer louco.
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Voltei a fumar. Depois de 15 anos, que fracasso. A secura pela nicotina adormecida dentro de mim todo esse tempo. Deus, quantos seres tenho adormecidos aqui dentro? Quem são? Que são? Será que posso despertá-los como se meramente dormissem?
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Passeio pelas ruas escuras procurando um bom lugar pra cometer o suicídio. Minha preferência oscila: ora almejo a um cenário especial, digno de sua tragédia, talvez um marco histórico, ora penso em uma esquina banal numa das ruas do centro, onde camelôs vendem eletrônicos do Paraguai e melancia fatiada.
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Não nasci para o mundo das conversões. Sou inconversível. Não sei calcular volume em metros, distância em quilos, calor em peso. Isso exigiria uma certa promiscuidade. Mas nasci para ser puro. Já vi gente se convertendo de palmereinse em corintiano, de engenheiro a astrólogo e de poeta a investidor. Conversões acontecem ao meu redor de manhã à noite, sempre surpreendentes, às vezes, estonteantes, outras, estarrecedoras. Todos vão se abrindo e fechando, gritando e emudecendo, rindo e chorando com toda naturalidade, ante meu horror. Acho que minha maior inconversibilidade se deu entre a infância e a idade adulta. Fiquei para trás. Estou lá, olhando tudo com meus olhinhos de criança inundados de perplexidade opaca.
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Acordo, vou para a porta da cozinha, olho o céu, vejo um beija-flor empoleirado no cabo do telefone, peço para ele salvar minha vida.
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Que estejamos todos separados no espaço, me parece razoavelmente aceitável. Mas que estejamos todos isolados no espaço e no tempo, é insuportável.
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Vou voltar a fumar mais dia menos dia. Sei que então não terei mais desculpas, será minha sentença de morte. Sempre tive a certeza de que cedo ou tarde acabaria decretando minha própria pena. Todo dia dançando frívolo minha ciranda em torno do meu totem sacrificado. Percebo – só agora – que evitava a todo custo olhar nos olhos dele (era aquele vazio que não conseguia definir com precisão). Que falta me faz aquela frivolidade.
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Você sabe que acabou quando até o passado deixa de ser um refúgio válido. Mesmo aquele teu passado secreto, de uso pessoal, construído das tuas fantasias mais dolorosas e impossíveis. É o adeus, tão longamente procrastinado, a elas, fantasias. O vazio que deixam é impreenchível – impreenchível por qualquer outra coisa senão a morte. Vamos lá, entregue-se. Não pode ser pior que ser essa impossibilidade que você sempre foi.
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Enfim construí minha prisão. Tudo conforme meu projeto inicial – sem luz, sem janela, sem porta, sem chave, sem saída, sem fim.
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Abro sôfrego minhas anotações de ontem, que escrevi sob o êxtase alucinado e patológico da depressão, certo de que irei encontrar as mais raras pedras preciosas. Vou me decepcionando à medida que leio, só me restando lamber, autocomiserativo,  palavra por palavra como se cada uma delas fosse uma gota do meu sangue gotejada duma xícara que se estilhaçou no tempo.
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Renuncio como se entrasse trancando a porta e deixando a chave no lado de fora.
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Você não precisa se matar espetacularmente. O primeiro a fazer é se livrar dessa fantasia de querer esfregar tuas verdades na cara dos teus familiares ou amigos. Você pode se matar aos poucos, silenciosamente, uma morte recatada e digna, como se fora doença incurável. Há várias maneiras de se envenenar sem chamar a atenção alheia. O principal é evitar bandeiras como arsênico e outros venenos que, em dando na vista, podem pôr teu plano a perder...
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A correção política totalitária que nos escraviza hoje nos impede a nós suicidas discretos de concretizar nosso pacto de morte autoimposto. Não nos permitem mais sequer que fumemos. O fumo é a arma que escolhi para dar cabo de mim mesmo. é meu único prazer. Com o fumo vivo e morro ao mesmo tempo, num ritual que celebro trinta, quarenta vezes todo santo dia e que é só meu e de mais ninguém e de que ninguém precisa ficar sabendo.
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Que vazio reconfortante.
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A vida não é doce e a morte não é doce – só têm um gosto que não sabemos.
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Decifraria o mistério da aranha condenada a cair presa de sua própria teia até ter de optar entre devorar-se a si mesma ou conformar-se à morte pela inanição de amor.
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Os melhores cheiros que senti foram os que senti sozinho.
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De repente me vejo ante uma missão impossível – como separar no lixo uma salada de berinjela dum cinzeiro de bitucas de cigarro.
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Dificilmente haverá experiência mais dessaborosa que ler Veja bebendo uísque.
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É um sufoco ter de preterir um adjetivo. Ai que gana de qualificar. Haverá casal mais perfeito que um sólido substantivo acompanhado dum eficiente e/ou providencial adjetivo? Em geral é tão triste, na hora de escrever, abandonar um substantivo à própria sorte. E se o leitor se identificar com a solidão do coitado? Certamente jogará a culpa toda ou em parte nas costas do incompetente autor. Ora, é muito fácil para o autor ficar longe de riscos que tais. Basta apelar à fartura. Descarrega uma batelada de qualificativos e pronto – assunto resolvido. Quem sabe o atento leitor pode até usar este texto como guia para identificar textos fartos por aí cujos becos sem saída seus autores resolveram lançando mão a torto e a direito de adjetivos mil. Senhores e senhoras, não nos avexemos. Mais importante que um texto enxuto, preciso e/ou bem escrito é o conforto do autor, sem o qual, afinal não haveria nem texto, nem substantivos, nem adjetivos nem nada.
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Lembro o dia quando descobri que as portas também serviam para quebrar nozes.
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Então você foi ficando pequeno, homenzinho minúsculo, boneco andando na rua, e eu fui ficando sozinho, mais que desesperado e então pensei em correr até a porta e te chamar e, se não fosse suficiente, te abraçar e, se não fosse suficiente, te amar, e então, mais pequeno do que já sou, me vi  impossibilitado de reagir, me limitando a olhar e a escutar e a respirar e a existir esta minha existência insolúvel em que ninguém chega e todos vão embora me levando a cada ida e quem chega é demais, é de menos, ontem eu sabia me conformar e dizer coisas para mim mesmo e dizia, tudo vai dar certo, nesta letra de balada folk que me martela o cérebro desde que nasci, as coisas mudaram na tradução, everything is gonna be alright, everything is gonna be okay, depois de todas aquelas guerras medonhas do século 20 era o mais certo a fazer, que mais nos restava além de recomendar a paz e praticar o amor? se eu soubesse que chegaria a este estado nunca teria lido um livro sequer, nem aprendido a ler, não tenho mais forças para fazer minhas razzias por aí, feneci, meu tempo passou e para compreender que meu tempo passou não preciso que ninguém me diga, tudo me conspurca, preciso me esvaziar de você e de tudo e não posso, a inocência se incrustou dentro de mim, cancro sonoro de áspero.
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Um livro é minha última esperança de ser alguém na vida. Já não tenho parentes próximos, amigos nunca fiz, não tenho a quem provar meu valor. Só me restam os desconhecidos. Não sei exatamente como provar meu valor a desconhecidos faria alguma diferença.
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Sonhei que estava vivo. Quase tão gostoso quanto buceta molhada de mar.
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Se você sujasse as mãos de sangue e tivesse apenas um pedacinho de papel higiênico para limpá-las, que faria: limparia ambas homogeneamente ou tentaria limpar apenas uma o máximo possível?
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Ontem assisti um documentário em que ricaços americanos compram trailers de 1,5 milhão de dólares que estacionam em vagas de 500 mil dólares num resort qualquer na Costa Oeste e vivem no mais absoluto sibaritismo com outros sibaritas de igual calibre. Peço piedade pela raça humana. Que fragilidade, PQP! Quantas esperanças, quantas idas e vindas, quantos eternos recomeços. Que uma raça assim exista para o único fim de padecer só pode ser obra do mais medonho, do mais vingativo dos seres, um ser concreto, decidido a infligir as mais terríveis dores. Sim, agora creio em deus.
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Na minha casa morta na garagem o carro morto, na cozinha a mesa morta, no quarto a cama morta, só eu ainda reluto em sucumbir, depois que ela foi embora.
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Se naquele momento ela se aproximasse de mim e confessasse que tinha vindo de Marte, eu não estranharia. Aquele dia eu estava de bigode e me sentia incessantemente estranho, como se fosse outro. Naquela época eu considerava aceitável a desculpa que eu tinha para mim mesmo.
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Posso ficar horas assistindo à dança da morte dum pernilongo. Fiquei craque em espirrar o spray de inseticida no desgramado apenas o suficiente para que ele tombe sobre minha mesa sem falecer duma vez. Tenho de tomar cuidado para não cobri-lo de inseticida, senão ele morrerá sufocado. Nem enxarcá-lo, caso contrário cairá na mesa grudando as asinhas irrecorrivelmente. O ideal é quando logro tirar-lhe apenas o dom de voar mas preservando sua capacidade de esperneamento e locomoção. Então ele dança bonito, saracoteando zonzo, aflito, angustiado, desesperado e, espero, perplexo. Quem dera a mesma perplexidade com que saracoteio em câmara-lenta pelo meu mundo em escala cinza.
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Nosso mundo hipertecnológico vai remoldando nossas cabecinhas duma forma que ainda é impossível determinar. As coisas hoje se reorganizam dum modo que para os nativos digitais parece absolutamente normal, mas que para nós pré-internet nunca abandona um travo de esquisitice. Vamos perdendo nossas noções de espaço físico e proximidade humana, trocados por um horizonte que se descortina numa tela, acessível a golpes de mouse. Talvez em décadas não tenhamos mais ideia da natureza original que nos cria a todos. Olho uma mata com sua infinita diversidade de formas, cores e mistérios e já não sei mais o que significa. Há nela uma ordem estranha ao meu senso digital de ordenação. A organicidade do mundo, que aparentemente um dia refletiu meu próprio cérebro orgânico, está além da minha percepção.

3 comentários:

  1. Para adolescentes eternos feito nós, só pode ser.

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  2. Nossa história é peculiar, não é? Começa décadas lá trás e, em vez de envelhecer, se renova como se tudo tivesse acabado de acontecer.

    Sim, temos o frescor do tempo.

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  3. Xaveco na cara-dura, é? Ó que as crianças tão de olho.

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