Dorido Primo e neandertais mil

Forte


A única liberdade atingível é acordar de manhã e ficar na cama. Quis dizer "tangível", acho. Liberdade porque nos vemos livres do jugo dos instintos sob o sono. Se durante a virgília, digo, vigília tivéssemos o mesmo grau de autoconsciência que temos quando dormimos, a civilização não duraria 2 dias. Bem que os presidentes podiam promover o Dia Mundial do LSD. Cada um de nós pobres viventes tomaria uma overdose de ácido e sairia por aí desprovido das travas civilizadas, botando pra fora tudo que nos desse na telha. Seria um fim à altura para essa nossa infausta epopéia pelo cosmos. 

Para Primo Levi em Ist das ein Mensch? o pior momento do dia era a hora de acordar, quando ele sacava, assombrado e mortificado, que Auschwitz NÃO era um pesadelo. Gulp, me arrepia pensar. Confrontado com padecimentos insuportáveis que tais me pergunto por que fui salvo, habituado que estou à minha sina católica de padecer no paraíso, embora às vezes me caia sobre a cabeça o relâmpago da certeza de que ninguém sofre/sofreu tanto quanto papai aqui. Tudo fica imensamente mais tenebroso quando você fecha o livro, a cada linha se perguntando o que levou aqueles milhares de italianos a fazer fila na estação ainda em Roma e, sem dar um pio, entrar no trem da morte convictos de que rumavam para o abatedouro e viajar quatro dias em pé atochados em vagões de gado, em cada solavanco das rodas nos trilhos um sinal ominoso da proximidade cada vez maior do fim e como aquelas atrocidades foram possíveis e como aqueles diabos sobreviveram a 20 horas de trabalho-escravo/dia sob 10 graus abaixo de zero, comendo uma batata de manhã e outra à tarde, quando você fecha o livro e o mundo sujo em que vivemos fica tão cristalinamente claro, nada mudou, nada vai mudar nunca, você é ou algoz ou vítima, não há inocentes, não adianta entrar no chóping e fingir que não está vendo, às vezes um indigente escapa da reserva dos selvagens e apaga um de nós só pra nos lembrar de que não, nossa vidinha besta não é um filme.

Quando acordo de manhã entregando minha consciência à negociação entre as trevas da morte e as garras unhudas da luz do sol me espicaçando os olhos, quando acordo de manhã entendo primitivos qual Lula, finalmente entendo. Poderosos desvairados como esse e tantos outros vivem no mundo da lua porque podem se dar o luxo de falar toda e qualquer besteira com que seu fígado podre lhes envenena o cérebro de pardal. Ah, dádiva da oralidade sem peias. Só os muitos poderosos e poetas podem botar pra quebrar. A poetas não se dá/nunca se deu/nunca se dará a mínima, poetas são entes quiméricos patéticos assimétricos, desde que Homero desenhou o primeiro alfa em papiro para encetar o sítio de Tróia e a odisséia de Ulisses sofrendo no lombo chicotadas líricas para deleite de meia dúzia de doutos diletantes que se ufanam de armazenar na estantes da sala algumas verdades sobre o mundo que, por verdades, não nos ensinam como passar ao largo do redemoinho Caribdes.

Adolf veio para provar que civilização não é antídoto para os bárbaros que nos espreitam dia e noite, comendo com olhos assanhados nossas mulheres e nossas filhas, aguardando a noitinha pra botar as patas em nossos carrões de trocentas pilas. Pra quem tá a fim de enxegar alguma coisa que não esteja nos livros, Lula veio mais uma vez provar que a boçalidade sem fim é tudo que nos resta. Talvez tudo que nos caiba. A cada meio século surge no pedaço algum teórico pontificando sobre o "papel" do homem no mundo. Reich, depois de décadas estudando a alma humana, aparentemente desencantado de teorias e cientificismos e já beirando o desvario, obrou Escuta Zé Ninguém, livrinho de autoajuda meio constrangedor em que ele afunda em racionalizações e conselhos vazios sobre como o homem médio poderia se libertar de seus medos bobos, se quisesse. Em sua cegueira libertária, Reich não enxergou a possibilidade dos zés-ninguém no poder. Tivemos um e temos outra bem agora no Planalto. Afinal, cada um de nós é o homem que se sente bem em ser massa de que falou Ortega y Gasset. 

Um comentário:

  1. Caro Wil,


    Esta boçalidade sem fim é o que nos cabe de verdade, de realidade. O LSD já é démodé. Estas drogas hard drugs avançaram . A esquizofrenia já nem é mais esquisitice. Parece também que virou um traço comum não só da história da humanidade, mas do próprio homem. Entretanto, dizer verdades soa como algo exótico, coisa de psicótico. A besteira cresce como joio e trigo. Separar, nem sempre se pode , quer, interessa e sabe-se .”Terra edêmica, pessoa adâmica -tolice é o preço que você terá que pagarpor esta inútil sabedoria/ Robert Creeley.” É preciso cuidado pois as clínicas “sonofugíterápicas” são uma fortuna, um luxo para poucos. Também a liberdade é um molde da roupa que nos veste , em cada necessidade, ou nos deixa nus. Afinal cada um tem o sonho ou a liberdade que lhe cabe ( nunca na palma da mão).“Ah, mon Cher Sulzer, vous ne connaissez pas assez cette race maudite, à laquelle nous appartenons ( Ah, meu caro Sulzer, você não conhece o bastante essa raça maldita à qual pertencemos).” Frederico, O Grande.


    Excelente texto. Parabéns.

    Desculpe ai o comentário joio neste trigal de palavras reluzentes.


    Beijos com carinho.

    ResponderExcluir