Manchete em pedrinhas de neon pink e roxo na minha cabeça

Adagio
Ampla faixa da praia está interditada.
Névoa espessa, quase sólida, abarca de Miramar quase até o Caiçara. (Sólida no duro, quem chega com o intuito de tomar sol ou um banho de mar bate a cara na névoa e ricocheteia.) 
Ali dentro nada se move. Ninguém se mexe. Não há vento. As pisadas na areia são as mesmas desde há 38 anos. As próprias ondas, imaginem, as próprias ondas parecem congeladas na mesma posição, sempre prestes a desabar umas sobre as outras, mas só isso – prestes, prestes, prestes.
Dentro da faixa não se mexe, não se fala, não se pensa, não se vive.
Embora nada aconteça de perto, de longe, de longe é possível enxergar duas figuras indistintas, de costas de quem olha de fora para dentro. As duas figurinhas estão entrando no mar. Estão de mãos dadas. Estão de roupa. Quer dizer, não vestem trajes de banho, e sim jeans e camisetas e tênis. Vai ver, é por isso que tudo parou. Onde já se viu? Uma entrada no mar de roupas, uma tão prosaica entrada no mar de roupas teria força para imobilizar tudo e todos desde o Caiçara até Miramar? A maioria das testemunhas tende a achar que não.
Só que não há testemunhas. Nunca houve. Testemunhas não existem. Mas, se existissem, nada seria diferente. Há no mundo e na vida não se sabe quantos bilhões de coisas que, mesmo se não existissem, o mundo e a vida e as bilhões de outras coisas restantes seriam exatamente iguais.
Não há nem houve testemunhas. Mas há envolvidos. Desses não se pode escapar. Tudo e todos estão envolvidos uns com os outros, entrelaçados numa trama inclemente de bifurcações e, ufa! irrespirável de colossal. 
(Se alguém aí souber como se livrar dos envolvidos, please, mande um email, carta, bata palmas, qualquer coisa.)
Um deles, dos envolvidos, chama a polícia. Todos têm vontade de cantar, mesmo assim alguém chama a polícia. (Paira sobre esta faixa da praia e sobre esta terra e sobre todas as outras a sina de que, quando se não se sabe que fazer a respeito de algo, chama-se a polícia e pronto. Talvez essa sina derive do mito segundo o qual tudo se resolve quando se pede socorro. 
Naquele tempo era assim, hoje em dia ainda é assim. Pede-se socorro por qualquer coisa, por mais trivial que seja. Embora uma ampla faixa de névoa quase sólida na praia nada tenha de trivial. Embora não atrapalhe a vida de ninguém, pois nunca ninguém jamais retornou pr'aquela faixa de praia nesses 38 anos. Sendo assim, ninguém notou a diferença. Se notasse, talvez ficasse encafifado com a Clara Alteração no Comportamento Mundial dos Mares. Mas hoje em dia ninguém se encafifa com coisa alguma, dado que de repente parecem estar todos anestesiados. Sempre estiveram? Sempre estiveram sem que outro alguém que não precisasse vir dum planeta longínquo tivesse sequer notado?)
Depois dum tempão, que pareceu durar séculos, o pedido de socorro é atendido. Uma viatura da peême finalmente chega. O policial ao volante é obrigado a frear bruscamente quando percebe que seria impossível adentrar a névoa quase sólida. Ao seu lado, o sargento fecha os olhos, certo de que não vai dar tempo. Ele rosna um palavrão entredentes.
Antes que os policiais tenham tempo de sair da viatura, um rapazola emerge de dentro da névoa quase sólida. Tem entre 12 e 15 anos, mas é um rapazola mesmo assim. 
Não sabia que ainda existissem rapazolas, pensa surpreso e surpreendentemente o sargento. É um pensamento vago mas que não deixa de ser pensamento. Surpreso porque jamais lhe passaria pela cabeça que de dentro daquela névoa estranha pudesse sair algo ou alguém. E surpreendentemente porque nem todo peême é dotado de fina argúcia perceptiva ou de capacidade de formular um subjuntivo em tão sutil harmonia com as normas do vernáculo quanto este sargento em vias de resolver o enigma da praia imóvel nesta insossa manhã de setembro.
O rapazola se aproxima da viatura. Tem numa das mãos um cesto de arame. O sargento nota que o cesto está cheio de siris. Refeito da surpresa inicial, agora ele não tem nada a estranhar, pois naquele tempo a praia abundava de siris e de outros bichos do mar.
– Você sabe o que está acontecendo aí dentro? – o sargento pergunta ao rapazola.
– Está acontecendo um montão de coisas. – O rapazola tem a língua presa, fala meio enrolada, como se a fala fosse um sentido do qual prescindiria facilmente se realmente pudesse. Ainda mais, é meio gago.
– Quem são aqueles dois que entraram no mar de roupa e tudo? – insiste a autoridade.
– Ainda não sei, sargento. – O rapazola tenta explicar com sua língua presa e gagueira e vontade quase invencível de falar só consigo mesmo.
O rapazola tem o olhar fixo em algum lugar no céu. O sargento se pergunta se haverá nas pupilas dele um brilho sonhador. O rapazola prossegue:
– Mas vou saber. Daqui a umas duas ou três semanas, vou saber. Pode ficar tranquilo. A única certeza por enquanto é que depois eles saíram da água. Não olharam pra ninguém em volta. Todo mundo ficou olhando pra eles. Aí entraram naquele prédio de três andares ali. – O rapazola indica uma direção com o dedo. – Subiram e quando a noite veio ele pôs the fool on the hill na vitrola e os dois dançaram a noite inteira, no meio do corredor.
– E ninguém ouviu? – O sargento se surpreende de novo. – Como é possível?
– Não me pergunte. – O rapazola dá de ombros.
O sargento fica desconfiado. O menino não quer falar. A gagueira, a língua presa, a gana de estar só consigo mesmo e muitas outras coisas mais de que o desconfiado sargento sequer desconfia.
No pequeno aglomerado de curiosos que se juntou em torno da viatura para assuntar, alguém tenta ligar o fatos. Sim, imaginam os curiosos, é possível ligar os fatos. Basta ter um pouco de vontade, porra. Um tiquinho de vontade! Será pedir muito? 
Day after day alone on a hill, the man with the foolish grin is keeping perfectly still, naquele tempo, com essa névoa miraculosa, esse gosto de sal do mar na pele, nos cabelos, nos olhos, a seda do teu babydoll no meu peito de rapazola, shampoo transcendental no teu cabelo liso, eu vivo pra este momento, god, eu espero este momento. Eu nasci pra este momento sem nenhuma outra finalidade, sem nenhuma outra função biológica, sem nenhuma outra pretensão filosófica, sem nenhuma outra vontade. Não tenho outra coisa, não sou outra coisa. Enquanto o disco girava na vitrola, fui me tornando um fóssil. The fool on the hill sees the sun going down. Fico girando em volta dele feito uma daquelas gaivotas sem pernas que naquela noite quente pairavam impensadas por sobre o telhado do prédio, sem pernas, impousáveis como nós dois naquela noite. 

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