Estrangula-me piedosa da maneira dos meus olhos

Sou um sujeitinho medíocre. Talvez um fracassado, graças a Deus.
Foi o que proclamou um amigo meu há exatamente um ano num lero online.
E eu disse assim:
Eis uma bela afirmação. Do tipo que me inspira. Dependendo do meu estado de espírito, também curto me achincalhar. É a única saída quando não podemos achincalhar o próximo.
Primeiro pensei que essa autodepreciação fosse uma mera vitimização existencialista fictícia para fins de efeito especial. Depois, com o "sujeito que não se encaixa na ordem das coisas, é inteligente mas não consegue um emprego altamente rentável, azarado no amor" fiquei em dúvida se você estava misturando realidade e ficção de propósito. Em qualquer caso, não me leve a mal por ver suas colocações nesses termos. Hoje não podemos ser senão anti-herois. Herois, e pretendentes a, são, santa mãezinha, inefavelmente ridículos. Principalmente os que vivem esfregando seus currículos na nossa cara.
O parágrafo introdutório de Notas do subterrâneo é um dos poucos que sempre tenho decor: Sou um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. O maior anti-heroi jamais inventado. Que coragem publicar a história dum homem em processo mórbido de autodegradação nos idos de 1864, quando minha tataravó pedia perdão por existir 24 horas por dia. Ainda hoje os loyola brandões, os carlos heitor conys, os milton hatoums da vida se cagam de medo de uma gota que seja de visceral. Certos círculos literários decretaram que ser visceral saiu de moda. Literatura agora se produz em boutiques.
Mas, coragem à parte, era relativamente fácil escandalizar a sociedade pudica da época. Se bem que ainda hoje o anti-heroi que chegou às telenovelas é apenas um subversivo extremamente light e inofensivo. Em breve você poderá ir preso se disser um palavrão ou fumar num restaurante. Mesmo nos fóruns literários se confunde ficção e realidade. Lobato virou vilão. É assustadora a necessidade de viver num angu formado de impostura e mentira. A raça parecia vir evoluindo, mas eis que a hipocrisia atinge níveis insuportáveis e nos tornamos campeões dos mentirosos de todos os tempos. É impossível botar o dedo na realidade. As placas de trânsito nos desencaminham.
Agora somos os alegres proprietários de vários tipos da Fantástica Máquina da Mentira. A tevê e as engrenagens publicitárias nos chupam, mastigam nossos sentimentos, devoram nossas aspirações e vomitam Robozinhos Consumistas de Livros. Autorezinhos do Bom-Senso. Poetinhas Criadores de Róseos Poeminhas. Vivemos bem esmagadinhos sob a lógica da mercadoria. Estamos desumanizados, embrulhados para presente no dia dos pais, das mães e do cacete. E até mesmo a transgressão é absorvida pelo Sistemão para que amanhã cedo o leitor possa sentir-se satisfeito por fazer parte da elite pensante. Precisamos encontrar meios de escapar ao nosso destino de itens de supermercado. Precisamos acordar do anestesiamento, das cantigas televisivas que nos convertem em felizes, risonhos, pseudointelectualizados cadáveres estendidos no sofá da sala.
Precisamos mais que tudo ter a coragem de identificar e debochar do senso comum. 
Inclusive -- ou sobretudo -- o senso comum do "bom gosto" literário.
Meter o sarrafo em P. Coelho, até meu sobrinho LV de oito aninhos é capaz. Quero ver é descer a lenha em Gabriel García Márquez. Quem se atreve?
E você na certa vai perguntar: por que cargas d'água que passarinho não bebe alguém meteria o pau em García Márquez? Todo aquele universo fantástico coisa e tal, tão lindinho, a gente até se esquece das mazelas do dia a dia.
Mas é tão mistificador em seu "realismo mágico", que a aparente beleza da narrativa sucumbe sob a profissão do irracional.
Outro ícone da literatura moderna em quem eu gostaria de dar umas cutucadas é Umberto Eco e seu cerebralmente sacal "O Nome da Rosa", que nos aliena das misérias do mundo e das nossas dores com sua sofisticação fajuta e sarcasmo benigno, fazendo de nós "consumidores culturais", nos entuchando de papagaiada teorizante, nos insuflando de um tolo sentimento de contemporaneidade para podermos encher a boca de farofa e presunção nas rodinhas de salão.
Mas não era disso nem do meu amigo nem de Dostoievski que queria falar quando comecei a escrever agora.
Queria dizer é que sou dividido.
Sou um quando escrevo a minha literatura, sou outro quando olho a literatura alheia. 
Quando escrevo meu arremedo de literatura, durmo. Para que outro em mim acorde. E digite de fato no teclado o que "ele" pensa deva ser digitado. Foi por isso que batizei meu blog de sonâmbulas sonecas. Pode soar pretensioso mas é a verdade. Seja como for, há muito aprendi a não dar bola para o que os outros achem de mim. Escrevi e ainda escrevo muito sobre o que penso da opinião do próximo. Se tiverem paciência, vejam http://sites.google.com/site/wilvaccari/umpf/deanjosratoseoutraspragas.
Essa dualidade (ou multiplicidade, no caso de caras óbvios como Pessoa) é muito mais comum na literatura do que imagina a vã filosofice dos diletantes). Na verdade todos somos mais ou menos múltiplos, sejamos escritores ou não. O literário esportista sufoca seus outros (por mil razões) e estamos conversados. Ser mais de um dá trabalho, e pacas. Assim que se dá conta da parada, o literário esportista escolhe com a mais absoluta inconsciência qual dos seus múltiplos quer ser e vai ser (in)feliz. O escritor, como deve estar claro, faz exatamente o contrário. Mete o nariz onde não foi chamado, brinca com fogo, avança o sinal, se arrisca, quebra a cara e clichês que tais. Alguns se matam. Como sou um sujeito relativamente normal, esses são meus preferidos.
Aqui, procuro me alienar das minhas idiossincrasias. Sei que é vão mas tento. Não resisto a fazer gracinha. Mas, cara, depois que você leu um ensaio qualquer de Mário de Andrade, único que seja, e se você for sensível aos perfumes exudados pela suculenta prosa do homem, pode desistir das regras de redação que a professora de Português te enfiou na cachola.
Embora não logre sufocar as ditas idiossincrasias, acho que estou ciente delas. Já é alguma coisa. O ato de escrever dispara em mim uma incontrolável viagem de murmúrios, urros, latidos, dejavus, flashbacks. Pode ser qualquer coisa. Mesmo um recado no telefone. Rubem Fonseca coleciona bulas de remédios. E, pombas, os lê. Para o literário esportista, é tara de gagá. Mas Fonseca não é de viver à toa, jogando no lixo suas mais sacras e comezinhas experiências.
Estando relativamente ciente das minhas idiossincrasias, vou escrevendo aqui tentando não viajar além da conta, ser minimamente legível, segurar o touro com minha cordinha elástica.
Por fim, escrevo, e só posso escrever, a partir da minha experiência. Que é (atenção: clichê à vista) pessoal e intransferível. Isto posto, a cada dia que passa me convenço mais de que me cabe ter um compromisso com quem me lê, qualquer que seja o contexto. A isso se chama legibilidade. Ao contrário do que imaginam os médicos com suas receitas, temos o dever de ser legíveis. (Me refiro aos derridas que complicam deliberadamente sua escrita para decretar que clareza é pobreza, sem nos dar chance de comprovar se há algum sentido recôndito em seu obscurantismo gótico. São outros quinhentos os grandes escritores que não dão nem nunca deram sopa a leitor que tem preguiça até de mastigar.)
Então tenho de buscar um equilíbrio entre a minha exclusivíssima pessoalidade e um mínimo de transparência para que o leitor possa saber onde meu galo canta.
De novo, meu maior horror são os pós-estruturalistas (ou simplesmente estrutaralistas nos EUA) franceses. Deve ser algum problema pessoal, tipos sanguíneos incompatíveis. Todo mundo e sua prima cai de amores por Barthes, Deleuze, Foucault, Lyotard. Taí uma pergunta que eu faria a um cara como Fonseca ou outro de sua estirpe, se pudesse: você lê Gilles Deleuze?
Porque sei que Leyla Perrone-Moisés, uma das mais destacadas críticas literárias do Brasil e professora emérita da USP, lê. E Roberto Schwartz. E Flora Süssekind. E todos os críticos literários olimpicamente menosprezados por Rilke. (Vide link.)
Bato tanto na tecla do estruturalismo porque são caras que dizem ter vindo para, no dizer típico deles mesmos, "jorrar luz". 
Melanie Klein, a mais bem-sucedida e  genialérrima discípula de Freud, disse, muito grosso modo, que o inconsciente, que é a matéria da psicanálise, se forma muito antes que os significados verbais e portanto tem uma lógica "interna" própria, ao mau passo que as palavras são referências à experiência real ou fantasiada e fazem parte do consciente. Daí a Lacan foi um pulo e dele aos guattaris, outro. O que esses franceses fazem é psicanálise? Provavelmente. E é literatura? Não sei. Pois não consegui ler, excetuando as Mitologias de Barthes, nenhum deles. Embora sejam endeusados inclusive nos EUA, o que para mim é um mistério. Franceses se amarram na liberdade e quanto mais infinita, melhor. Mesmo que seja a de proferir aboborinhas com picles.
Mas os grandes escritores contemporâneos mais experimentalistas, de Joyce em diante, lograram um certo equilíbrio entre as idiossincrasias, a experiência pessoal e o inconsciente e a legibilidade, a capacidade de transmitir essa experiência e o consciente. O exemplo óbvio é o stream of consciousness.
Li Ulisses molecão. (Se me permitem uma indiscrição, nome do meu filho mais velho, hoje doutorando em, bidu, filosofia.) Aliás de novo, tudo de importante que li, li até os 30. E, santa mãe, não li lhufas. Com 57, vou me arrastando sob a mais atroz das dúvidas: reler o que sei que vale a pena ser relido ou ler pela primeira vez o que nunca pude mas sei ser fundamental. 
Nos últimos tempos virei um ciscador. Tenho uns 10 mil títulos no meu disco rígido. Pela própria experiência sei que leitura me faz bem e qual é perda de tempo. Você tem de optar cedo ou tarde. Mas nunca deixe de ler agora o que sua intuição pede. Amanhã será tarde. Algumas obras queria reler porque acho que hoje minha chance de compreendê-las seria maior. Mas pulsa em mim ainda viva a energia com que me tranquei no quarto e devorei em dois dias A educação sentimental, energia de que hoje resta apenas um laivo, e podes crer bicho, ler aos 18 anos não tem igual. Se eu pudesse voltar, leria até morrer. 
Agora o que mais faço é escrever. Não tenho mais saco para ouvir e tentar entender as experiências alheias. E o que leio mais é poesia. A mais nobre e difícil das escritas. E das leituras. Tenho quatro romances entre escritos e a reescrever. Duvido que terei tempo e força para acabá-los. Escrevi cada um qual Pessoa: num transe. Precisaria reencontrar cada transe para retomar. Como é foda escrever, apesar das piadinhas de Ferreira Gullar a respeito.
É escrevendo, ou tentando, que você aprende a dar valor aos escritos dos outros. Cada um tem, uau, sua cruz.
Fim.
Não percam no próximo capítulo mais uma patética tentativa de retomar o esgarçado fio da meada e de como me embrenhei no labirinto para descobrir, decepcionado, que o Minotauro é vegetariano.

Um comentário:

  1. Foda, meu caro. Tenho 20 anos e há apenas 2 que fui, como costumo dizer, amaldiçoado. Muito me tranquilizam as palavras de um veterano soarem dessa maneira — inquietas e (por vezes) desesperadas, como as de quem começa a escrever agora, só que diferente. Sempre diferente.

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