Este vosso devasso vassalo
é um narcisista. Dando uma olhada por aí procurando Cultura do narcisismo de Christopher Lasch no original, que a tradução vertida que tenho em casa é
ilegível, não achei mas achei porém e portanto uns textinhos arretados de e sobre Lasch e
também outros não culturais mas psicológicos mesmo.
Antes de me debruçar sobre
o batuta historiador biguemaquiano, peguei os PDFs escritos por uns teóricos
americanos e fui lendo ciente do risco a que me expunha. Não sei se você sabe,
nove entre dez suicidas põem um fim definitivo a este vale de lágrimas no
período de 23 minutos que se sucedem à leitura dum estudo psicológico. Quando o
estudo é dissertação de mestrado, tal período se abrevia para 3' 42'', que é
compreensível – mesmo eu, que sequer uma vez na vida experimentei o
supostamente agridoce desconforto de pensar em dar um tiro nos miolos,
"até porque" não sou homem o
suficiente para andar armado, o que todos deveríamos fazer, naturalmente,
instaurando o bangue-bangue até que lográssemos um mínimo de civilização,
afinal você acha que o desenvolvimento social dos senhores do Império veio de
onde?, já passei por bons percalços depois de me meter com uns livrinhos do
estudo da mente por causa dessa minha mania de bisbilhotar dentro de mim
mesmo.
Uns quinze anos atrás,
ainda com alguns resquícios das não bem soterradas traquinagens da infância,
vivia me imiscuindo nas perigosas aventuras do autoconhecimento, coisas da
idade, veja só quantas asneiras cometemos antes dos trinta, e os batutas da
literatura já nos deram razoáveis instruções sob essa neblina, fazia muito
tempo que me engraçara por Melanie Klein e suas genialérrimas sacadas sobre o
seio, quando comecei a enxergar a luz, horas havia em que me olhava no espelho
e via uma descomunal teta ambulante, embora essa imagem Woody Allen a tenha
estragado definitivamente, de repente tudo ficava tão simples, não, não quero o
seio nem o que ele possa me dar, quero é ser o seio, não admito que ele possa
existir fora de mim, me acorrentando irresistivelmente a essa humilhante
condição de dependência.
Entrementes, ciscando em
alguns outros grandes cabeções, um dos que fincaram a bandeira do destino na
desolada superfície poeirenta desta minha peripatética cabeça-de-lua, foi um estudo
do Bion em que ele dissecava as tragédias que podem acontecer entre o olhar
cavernoso duma mãe meio destrambelhada e seu indefeso bebê, quase pude sentir
então sobre mim os olhos demoníacos, a perturbação sufocante, agravadas por
minhas ligeiras tendências românticas, por isso, penso, putz, sou narcisista,
quem não é? chegou o dia em que já me achava pronto para armar um consultório
na praia e dar atendimento, eu e minha meiga analisanda casualmente bebericando
umas bramas, mirando sonhadoramente o mar, procurando devassar o que se passa
nas profundezas abissais de todos nós.
É dor lancinante ver teus
cacarecos mentais assim expostos ao poderoso mas desfocado holofote de mil
velas pálidas da tua conscienciazinha metida a besta, vexaminosamente incapaz
de pegar o fio das tuas meadas neuróticas. A brincadeira custou uma nota para o
meu delicado equilíbrio psicológico até que finalmente, depois de oito anos
tentando em vão retornar ao divã bege-claro e pés de imbuia postado contra uma
das paredes também bege daquele frio e impessoal consultório no oitavo andar
daquele prédio quase em frente à matriz de São Bernardo onde Lula, se
escondendo dos milicos doidões para lhe tosar a barba castrista, aprendeu a passar a lábia na classe média deslumbrada com um governo socialista que então
já não tinha a mínima possibilidade de dar certo, divã que tão amargas
lembranças me traz, por fim me resolvo a abandonar as tolas pudicícias
estéticas que, cogitei um dia, poderiam me abrir o promissor caminho da
profissão literária, me desnudando por inteiro diante dos cobiçosos olhos
abelhudos dos internautas sordidamente escarafunchando os mais íntimos segredos
alheios em vez de cuidarem de suas próprias taras inconfessas.
Por isso, nunca é demais
repetir, minha prezada leitora doidivanas: se normalmente você vê mais encantos
misteriosos no Juquiri que no chóping Iguatemi, te entera! Você é forte
candidata a entrar em atroz estado depressivo se decidir se enfronhar na
literatura psicanalítica. Já vi gente se atirar debaixo do ônibus por causa
disso. Sorte que o dito já estava desligado, recolhido na garagem da viação, me
dando tempo de resgatar a abilolada e ainda aplicar uns consolos ulteriormente,
que ninguém es de hierro.
Este não é o caso,
naturalmente, daquelas jovenzinhas que saem da faculdade de psicologia, montam
um "consultório" e começam gaiamente a exudar interpretações
psicosméticas em direção à primeira vítima que lhes caia nas garras sequiosas
de grana, sem nenhuma idéia de que podem detonar a saúde mental do pobrezito.
Erros médicos muitas vezes são identificáveis e, apesar do oba-oba de tudo que
é feito no Berção, da pusilanimidade dos órgãos de classe que deveriam punir
médicos charlatões, um ou outro acaba denunciado e justiçado. Erros de
psicanalhas, não. É bem capaz de o consultando sair do consultório mais
doidinho que entrou, pegar a primeira estação do Metrô que encontrar pela
frente e se jogar nos trilhos sem que se suspeite que uma interpretação
nas coxas tirada da cartola por algum semianalfabeto que fez quatro anos
de psicologia onde aprendeu a aplicar testes de Rorschach num dos
cursos universitários grassando por milhares de fundos de quintal Berção afora,
tendo lido as orelhas de três ou quatro livros técnicos, mas, como adora
alardear aos quatro ventos, com vocação para ajudar os outros, com sensibilidade
para enxergar o padecimento alheio e com outras malandragens que tais. Que
isso seja possível é simbólico de que ainda temos uns dez séculos de
calamidades pela frente antes de nos chamarmos um país.
Ah! eis aqui meu Cultura
do narcisismo todo empoeirado. Abro na primeira página, ugh! tradutores
deviam ser açoitados e depois fervidos em azeite puro de oliva e servidos aos
índios kaiowá que andam se matando por não encontrarem mais lugar neste mundo
fadado à crueldade numa cerimônia que seria apoteótica e derradeira. Não
adianta insistir, não há duas línguas que se equivalham, afora um ou outro
vocábulo sinonímico. Os fields brothers tinham razão, o jeito é recriar. Mas
pobres tradutores, o que ganham mal dá para pagar o bauru que devoram enquanto
esmerilham o teclado tentando preencher a cota de trinta mil caracteres por
dia. Quem mandou ser masoquista, invejando e tentando emular a obra alheia? Eu
que não fui.
Tem gente por aí que, salvante uns delírios de
grandiosidade, ataques de autoimportância, manias de sucesso sem tamanho,
onipotência e inteligência inigualável, ah! aqui está, O narcisista cerebral,
tem gente por aí que até se dá bem quando fica na sua.
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