Era uma vez uma borboleta que não sabia sonhar.
Por não saber sonhar, também era incapaz de voar.
Por não poder voar, nem se lembrava de que era
borboleta.
Na maior parte do tempo se achava uma reles
formiguinha. Sempre às voltas com sua árdua faina diária, zanzava a tremular
frenética suas patinhas dum lado para outro numa hiperatividade que a deixava
zonza.
Por isso ela meio que tristonha ia vivendo.
E de tanto ir assim vivendo com tamanho esforço e
tristeza, sempre se esquecia de que tinha asas.
“Ah, se eu tivesse...!”, lamentava-se a pobre,
acometida da mais amarga amnésia.
Se soubesse que tinha asas de fato, as estenderia
na luz do sol da manhã. E então suas asas reluziriam em todas as cores do
arco-íris no mais belo dos caleidoscópios. E quando batesse a primeira brisa
matutina, tiraria os pezinhos do chão como que por encanto e adejaria
suavemente, para a seguir erguer-se até lá encima por sobre as copas das
árvores. E nesse momento, vendo-se diante de toda a imensidão do céu e sentindo
o coraçãozinho se tomar da mais inebriante liberdade, talvez se lembrasse.
Se lembrasse de quê?
Se lembrasse das asas e de todo o resto que a vida
a obrigara a esquecer.
Quem sabe, até aprendesse a ouvir o chilrear dum
tico-tico que vivia a sobrevoar seu caminho, assobiando um consternado canto de
amor não correspondido.
“Deixe de besteira!” ralhou a severa formiga que
morava em algum lugar nas cercanias do ninho da borboleta assim que esta
começava a divagar. “Vá trabalhar, que ganha mais. Devaneio não enche barriga nem
paga a conta da NET no fim do mês. Hunf!”
No ato a borboleta acatava a ordem da formiguenta
vozinha interna, pois, sendo obediente desde o nascimento, nunca lhe ocorrera a
ideia de que podia mandar a chatinha bestalhuda calar a boca, lamber sabão de
coco ou plantar batata-doce.
E assim, tampando os ouvidos para não escutar o
melífluo gorjeio do tico-tico, lá se ia a prendada borboleta ganhar outra vez,
outra vez e ainda outra o pão de cada dia.
Mas, além de não saber sonhar e voar e de fazer de
conta de que não tinha asinhas, a opressora formiga convencera a submissa
borboleta de que seus afazeres de borboleta trabalhadeira e esforçada eram
absolutamente incompatíveis com a melodiosa música entoada por aquele pássaro
abusado.
Como assim, incompatíveis?
Talvez nem a própria borboleta soubesse dizer como.
Ou talvez soubesse mas, estranhamente, não se animava a dizer.
O fato é, sempre que o coitadinho abria o bico para
pipilar um cântico de amor, a teimosa borboletinha se apressava a tampar os
ouvidinhos. Às vezes se limitava a emitir um belo dum resmungo, querendo
enxotar o canoro voador. Outras, extremamente raras, concedia ao miserável uma
econômica confidência de cinco ou seis palavrinhas e, para perplexidade do
cantador, recolhia-se novamente à sua solene mudez.
No mais das vezes, porém, ela simplesmente não
tomava conhecimento do persistente tico-tico e então quem se recolhia a um
canto era ele. E então de novo o frustrado penudo chilreava ainda mais triste e
melífluo, tentando se consolar com a própria solidão.
E lá encima, no galho mais alto do raquítico e
apodrecido salgueiro onde morava, o melancólico tico-tico passava suas
tenebrosas noites a chorar, cada vez mais amargurado com a indiferença de sua
adorada borboletinha.
“Será minha música um despropósito?”,
atormentava-se ele, pupulando entre os galhos, agitando-se no meio da
escuridão. “Será possível que meu canto puro e singelo não tenha o dom de tocar
o duro coraçãozinho de minha amada? Haverá de fato tamanha distância entre nós,
que nem mesmo minha impenitente, contínua toada seja capaz de transpor?”
De repente o pobre tico-tico arregala os olhinhos
inundados do negro da noite e, lívido, especula com as próprias penas: “Ou será
que a minha querida borboletinha nutre desprezo por seres que nada fazem senão
voar e, glup!, trilar ao deus-dará?”
Concluindo, era essa a situação dos nossos dois
personagens no momento em que encerrávamos (temporariamente, esperamos) esta
modesta, despretensiosa fabulazinha.
De um lado, nossa aparentemente imperturbável borboleta
que não sabia sonhar nem voar (e que aparentemente queria continuar assim) ia
tocando em frente, voltada para seu dia-a-dia, sempre dando ouvidinhos à
formiguenta voz da razão que nunca parava de martelar em sua cabecinha os mais
sensatos conselhos e alheia a qualquer tipo de utopia voadora.
Do outro, nosso
desiludido tico-tico, inconformado com o descaso daquela que lhe provocava os
mais desalentados suspiros no sôfrego peitinho e os mais doloridos nós na
garganta.
Garganta que, em certas
noites, quando a dor do menosprezo latejava mais aguda, parecia querer
fechar-se para todo o sempre para silenciar eternamente.
Gosto da leitura que me leva... E posso imaginar clarões. Visitei todos, e olhei mais a borboletinha como se passasse frente ao "espelho".
ResponderExcluirMuito obrigada.