Blogando 3528


Ou "Os campeões da felicidade"
Sei que meus quase dois fiéis leitores vão se perguntar, cadê os Blogandos 3515 que faltam? Então respondo, antes que os quase dois percam a paciência e me deixem falando definitivamente sozinho. A verdade é, não está faltando Blogando nenhum.
Querem que lhes diga o que está faltando? Então digo.
Está faltando viver a vida de verdade.
Pode parecer bobagem, sei. A mim ao menos parece. Afinal, do jeito que vejo as coisas — e só posso ver as coisas do meu jeito, não é mesmo? —, não consigo imaginar alguém que não viva a vida. Mesmo o chamado "vegetal", aquele que sofreu uma doença grave incurável e é mantido vivo através da miraculosa tecnologia médica destes novos velhos tempos, está vivendo sua vida. Se não está, vive a de quem? Por incrível que possa soar, até mesmo eu acho que às vezes logro ter esse formidável sentimento de que estou extraordinariamente vivo, vejam só. Certo, é forçoso reconhecer que a vida do pobre vegetal entubado não é batatinha. A dos seus próximos, idem. Como idem é a minha.
O problema é que todo mundo e seu clínico geral só reconhecem o que chamam vida se esta for repleta de teres e prazeres que não deem margem às angústias próprias da raça, preenchendo cada ínfimo momentozinho da existência com os suaves perfumes exalados pelo estofamento dum carrão 0K ou dum novo conjunto de sofá em couro de cabrito montanhês (benhê, sente só o ronquinho manero desse mortorzão de 500 cavalos, ai, acho que vou ser feliz até a semana que vem).
Provavelmente meus quase dois leitores nunca ouviram falar do teólogo americano Karl Paul Reinhold Niebuhr. Mas é quase certo que sabem até decor a famosa Prece da serenidade, de autoria de Niebuhr : Senhor, me dê a serenidade necessária para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas posso e sabedoria para distinguir umas das outras.
À luz dos conceitos embutidos nessa prece, é curioso notar que Niebuhr, sendo teólogo, alertava particularmente contra três perigos: utopismo, messianismo e perfecionismo.
Bela, comovente oração. Mas, da maneira como vejo, utópica. Sim, paradoxal, em minha opinião. Pelo menos no que, com minhas infinitas limitações morais, me concerne. Nenhuma das três virtudes envolvidas na prece são meu forte. Não sou sereno e fico furioso com quem é. Não sou corajoso e tenho medo de quem é. Não sou sábio e duvido de quem é. Cresci em família fervorosamente católica e desenvolvi precocemente a capacidade de duvidar dos religiosos em geral e católicos em particular. Mantínhamos estreita proximidade com padres, párocos, coroinhas e beatos a granel. Fui testemunha ocular de padre que era santificado nas coversas em casa ser flagrado em affairs sexuais nada sacros. E, adulto, me assombrei com as denúncias de abuso sexual cometido pelos "homens de Deus" na alcova das sacristias. Jesus, haverá maior crueldade que um sujeito supostamente santo se valer de sua autoridade moral e religiosa para tirar proveito carnal duma criança? Em outras religiões, outros tipos de defeitos. Os judeus são extremamente egoístas e incapazes de generosidade para quem não pertença a sua seita. Radicais existenciais como os espíritas são para mim irrealistas hors concour. Faquires e ascetas em geral se anulam como gente para devotar a existência ao espírito, para nós ocidentais uma não-opção.
Acontece que Niebuhr tem uma outra citação famosa, essa sim mais do meu agrado: A capacidade de justiça do homem torna a democracia possível, mas a inclinação do homem à injustiça torna a democracia necessária.
O que, em primeiro lugar, nos coloca como grupo, com força coletiva para mudar o mundo, não mais como um indivíduo débil, desamparado, a quem só cabe almejar ao impossível e em assim sendo mudar apenas em sonho. E mudar, se, só a si, que dirá o mundo.
Agora chega de escrita bacharelesca, citações, explanações com ranço acadêmico. Pra variar ou não, me perdi pelo caminho e agora aqui sozinho não tenho aonde ir.
Os campeões da felicidade e seu de-bem-coa-vida são um tema recorrente em minha grande obra, no espelho quebrado que não tenho na parede do meu quarto.
Não é possível mudar seja o que for como for. Period, paragraph.
Podemos tomar como exemplo as maiores democracias do mundo como os EUA, Canadá e alguns europeus. Mas como todos sabem, a um preço, um preço nada módico. Os nórdicos têm sua infinidade de conquistas sociais, com estado paizão, garantias e proteções benévolas ao indivíduo e as maiores taxas de suicídio do planeta. Os americanos botam aquela vasta feira de princípios à disposição de seus cidadãos, do mórmon absolutamente refratário à tecnologia qual um Heidegger com quociente de inteligência mediano, passando por bárbaros que acreditam que um câncer ou AIDS seja castigo de deus, até chegar a insensatos para quem abortar é crime mas mandar um vilarejo iraquiano pelos ares tudo bem.
Você pode ser um consumista maníaco, um religioso cuja fé fervorosa aniquile internamente todos os resquícios das contradições que nos habitam, um falastrão tão encanado em sua compulsação a tagarelar, que acabou perdendo a capacidade de escutar, um eterno aspirante a escritor cuja única pretensão é não ganhar o nobel, mas apenas ir escarafunchando as tralhas que traz dentro de si para ver se obtém um aprendizado mínimo de como seus mecanismos funcionam.
Vimos construindo espetaculares sistemas filosóficos e arrebatadoras obras poéticas desde Sócrates e Homero. Metade da população da Terra vive para os estudar ainda hoje. É uma das razões por que se criaram e por que persistem. O socialismo consiste duma parafernália de conceitos que alguém periodicamente tenta botar em prática só para quebrar a própria cara e a de alguns de milhões outros que têm o azar de estar na hora errada no lugar errado. O socialismo só pode dar certo enquanto o Estado for capaz de manter um controle absurdo, totalitário, sobre os cidadãos. O capitalismo é a evolução natural duma diversidade de situações e fatores que redunda em relativa liberdade de expressão, locomoção, reunião e outras, liberdade que, quando leva a excessos e distorções e abusos, requer a intervenção do Estado para impor uma ordem mínima de convivência entre setores sociais que no mais das vezes têm interesses antagônicos ou conflitantes.
De onde tirei essa conversa sóciofilosófica? Provavelmente da grande discussão lá fora sobre Zé Dirceu e sua figura de sabe-se lá quantas máscaras. Eis aí um sujeito cuja vida é uma novela de formidáveis atribulações. Se diz e sempre se disse um herói. Há discordâncias. E veementes. De minha parte, acho mais razoável acreditar em quem o considera um aproveitador calculista interesseiro e mercenário. Afinal fez carreira vociferando contra as elites e hoje é amigo e "consultor" dos eikes baptistas da vida. Para mim é um mero playboy socialista, um aventureiro. Que, apesar da condenação e eventual cana, deu certo. Agora, sacando que dentro da xadrez sua fantasia de heroi provavelmente será rasgada, passou a investir na figura do mártir. Não deixa de ser admirável a obstinação do cara. Não larga o osso, o osso da mentira, nem que lhe esfreguem a verdade na fuça.
Nesse tipo de mascarado é mais fácil identificar mil contradições, pois se submetem a grandes exposições e vivem circunstâncias que são mais díspares entre si, mas elas, contradições, obviamente existem em cada um de nós. Em mim, as curto, as cultivo, as rego e as afago carinhosamente a cada instante.
A maioria, me parece, quer é enfiá-las sob um tapete, trancá-las num baú, atirá-las no fundo dum poço, fazer de conta que não está lá. São os positivos unívocos nascidos, merecidamente, para o júbilo. São os de-bem-coa-vida.

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