Ou "Os
campeões da felicidade"
Sei que meus quase dois fiéis
leitores vão se perguntar, cadê
os Blogandos 3515 que faltam? Então
respondo, antes que os quase dois percam a paciência e me deixem falando
definitivamente sozinho. A verdade é, não está faltando Blogando nenhum.
Querem que lhes diga o que está
faltando? Então digo.
Está faltando viver a vida de
verdade.
Pode parecer bobagem, sei. A mim ao
menos parece. Afinal, do jeito que vejo as coisas — e só posso ver as
coisas do meu jeito, não é mesmo? —, não consigo imaginar alguém que não viva a vida. Mesmo o chamado
"vegetal", aquele que sofreu uma doença grave incurável e é mantido
vivo através da miraculosa tecnologia médica destes novos velhos tempos, está
vivendo sua vida. Se não está, vive a de quem? Por incrível que possa soar, até
mesmo eu acho que às vezes logro ter esse formidável sentimento de que estou
extraordinariamente vivo, vejam só. Certo, é forçoso reconhecer que a vida
do pobre vegetal entubado não é batatinha. A dos seus próximos, idem. Como idem
é a minha.
O problema é que todo mundo e seu
clínico geral só reconhecem o que chamam vida se esta for repleta de teres e
prazeres que não deem margem às angústias próprias da raça, preenchendo cada
ínfimo momentozinho da existência com os suaves perfumes exalados pelo
estofamento dum carrão 0K ou dum novo conjunto de sofá em couro de cabrito
montanhês (benhê, sente só o ronquinho manero desse mortorzão de 500 cavalos,
ai, acho que vou ser feliz até a semana que vem).
Provavelmente
meus quase dois leitores nunca ouviram falar do teólogo americano Karl Paul
Reinhold Niebuhr. Mas é quase certo que sabem até decor a famosa Prece da serenidade, de autoria
de Niebuhr : Senhor, me dê a serenidade necessária para aceitar as
coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas posso e
sabedoria para distinguir umas das outras.
À luz dos conceitos embutidos nessa
prece, é curioso notar que Niebuhr, sendo teólogo, alertava
particularmente contra três perigos: utopismo, messianismo e perfecionismo.
Bela, comovente oração. Mas, da
maneira como vejo, utópica. Sim, paradoxal, em minha opinião. Pelo menos no que,
com minhas infinitas limitações morais, me concerne. Nenhuma das três virtudes
envolvidas na prece são meu forte. Não sou sereno e fico furioso com quem é.
Não sou corajoso e tenho medo de quem é. Não sou sábio e duvido de quem é.
Cresci em família fervorosamente católica e desenvolvi precocemente a
capacidade de duvidar dos religiosos em geral e católicos em particular.
Mantínhamos estreita proximidade com padres, párocos, coroinhas e beatos a
granel. Fui testemunha ocular de padre que era santificado nas coversas em casa
ser flagrado em affairs sexuais nada sacros. E, adulto, me assombrei com as
denúncias de abuso sexual cometido pelos "homens de Deus" na alcova
das sacristias. Jesus, haverá maior crueldade que um sujeito supostamente santo
se valer de sua autoridade moral e religiosa para tirar proveito carnal duma
criança? Em outras religiões, outros tipos de defeitos. Os judeus são
extremamente egoístas e incapazes de generosidade para quem não pertença a sua seita. Radicais existenciais
como os espíritas são para mim irrealistas hors concour. Faquires e ascetas em
geral se anulam como gente para devotar a existência ao espírito, para nós
ocidentais uma não-opção.
Acontece que Niebuhr tem uma outra
citação famosa, essa sim mais do meu agrado: A capacidade de justiça do
homem torna a democracia possível, mas a inclinação do homem à injustiça torna
a democracia necessária.
O que, em primeiro lugar, nos coloca
como grupo, com força coletiva para mudar o mundo, não mais como um indivíduo
débil, desamparado, a quem só cabe almejar ao impossível e em assim sendo mudar
apenas em sonho. E mudar, se, só a si, que dirá o mundo.
Agora chega de escrita bacharelesca,
citações, explanações com ranço acadêmico. Pra variar ou não, me perdi pelo
caminho e agora aqui sozinho não tenho aonde ir.
Os
campeões da felicidade e seu de-bem-coa-vida são um tema recorrente em minha
grande obra, no espelho quebrado que não tenho na parede do meu quarto.
Não é possível mudar seja o que for
como for. Period, paragraph.
Podemos tomar como exemplo as
maiores democracias do mundo como os EUA, Canadá e alguns europeus. Mas como
todos sabem, a um preço, um preço nada módico. Os nórdicos têm sua infinidade
de conquistas sociais, com estado paizão, garantias e proteções benévolas ao
indivíduo e as maiores taxas de suicídio do planeta. Os americanos botam aquela
vasta feira de princípios à disposição de seus cidadãos, do mórmon
absolutamente refratário à tecnologia qual um Heidegger com quociente de
inteligência mediano, passando por bárbaros que acreditam que um câncer ou AIDS
seja castigo de deus, até chegar a insensatos para quem abortar é crime mas
mandar um vilarejo iraquiano pelos ares tudo bem.
Você pode ser um consumista maníaco,
um religioso cuja fé fervorosa aniquile internamente todos os resquícios das
contradições que nos habitam, um falastrão tão encanado em sua compulsação a
tagarelar, que acabou perdendo a capacidade de escutar, um eterno aspirante a
escritor cuja única pretensão é não ganhar o nobel, mas apenas ir
escarafunchando as tralhas que traz dentro de si para ver se obtém um
aprendizado mínimo de como seus mecanismos funcionam.
Vimos construindo espetaculares
sistemas filosóficos e arrebatadoras obras poéticas desde Sócrates e Homero.
Metade da população da Terra vive para os estudar ainda hoje. É uma das razões
por que se criaram e por que persistem. O socialismo consiste duma parafernália
de conceitos que alguém periodicamente tenta botar em prática só para quebrar a
própria cara e a de alguns de milhões outros que têm o azar de estar na hora
errada no lugar errado. O socialismo só pode dar certo enquanto o Estado for
capaz de manter um controle absurdo, totalitário, sobre os cidadãos. O
capitalismo é a evolução natural duma diversidade de situações e fatores que
redunda em relativa liberdade de expressão, locomoção, reunião e outras,
liberdade que, quando leva a excessos e distorções e abusos, requer a
intervenção do Estado para impor uma ordem mínima de convivência entre setores
sociais que no mais das vezes têm interesses antagônicos ou conflitantes.
De onde tirei essa conversa
sóciofilosófica? Provavelmente da grande discussão lá fora sobre Zé Dirceu e
sua figura de sabe-se lá quantas máscaras. Eis aí um sujeito cuja vida é uma
novela de formidáveis atribulações. Se diz e sempre se disse um herói. Há
discordâncias. E veementes. De minha parte, acho mais razoável acreditar em
quem o considera um aproveitador calculista interesseiro e mercenário. Afinal
fez carreira vociferando contra as elites e hoje é amigo e
"consultor" dos eikes baptistas da vida. Para mim é um mero playboy
socialista, um aventureiro. Que, apesar da condenação e eventual cana, deu
certo. Agora, sacando que dentro da xadrez sua fantasia de heroi provavelmente
será rasgada, passou a investir na figura do mártir. Não deixa de ser admirável
a obstinação do cara. Não larga o osso, o osso da mentira, nem que lhe
esfreguem a verdade na fuça.
Nesse tipo de mascarado é mais fácil
identificar mil contradições, pois se submetem a grandes exposições e vivem
circunstâncias que são mais díspares entre si, mas elas, contradições,
obviamente existem em cada um de nós. Em mim, as curto, as cultivo, as rego e
as afago carinhosamente a cada instante.
A maioria, me parece, quer é
enfiá-las sob um tapete, trancá-las num baú, atirá-las no fundo dum poço, fazer
de conta que não está lá. São os positivos unívocos nascidos, merecidamente,
para o júbilo. São os de-bem-coa-vida.
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