Blogando que número mesmo?

Não foi a primeira vez que vi o morto ou que cruzei com ele.
Nos últimos meses o avistava dobrando a esquina (estaria se esgueirando?) ou apertando os passos na calçada do outro lado da rua como se tivesse um compromisso urgente (estaria se afastando apressado de algum conhecido inconveniente?)
Nessas poucas vezes, sempre nas redondezas (nunca o vi a mais de três ou quatro quarteirões daqui de casa), ele desvanecia da minha mente tão logo o tirava do meu campo de visão. 
Pensando nisso agora, fico quase surpreso comigo mesmo (como se isso por sua vez também fosse surprendente). Pois cada indivíduo com quem cruzo na calçada em minhas caminhadas regulares ao lado da minha indefectível Zezeí me deixa virtualmente — sim, virtualmente, posso garantir — uma impressão tão forte, que pode monopolizar meus pensamentos por horas a fio. Dependendo do caso, dias.
E, não sei se para minha felicidade ou infortúnio, tal indivíduo nem carece ser lá intrigante ou sequer interessante. 
Certo, como escritor, não vou cometer a bobagem de dizer que pessoas há neste mundo que não valem meio pensamento furado. Não há. Isso também posso garantir. Se não for preguiçoso ao extremo nem tiver tido sua curiosidade definitivamente anestesiada por toneladas de lixo televisivo ou por essa nova doença chamada portais de relacionamento, você sempre poderá encontrar algo que valha a pena explorar durante um passeio pelas ruas, seja no gari que varre a calçada como a fuça dele com a desculpa de que a merreca que ganha por mês não o motiva o suficiente para uma caprichada extra nas vassouradas, seja na senhora de passos largos e vagarosos cuja nobreza fica patente pela elegância do andar e a distinção da roupa, seja o "executivo" saindo da garagem do prédio com seu megacarrão de trocentos zilhões de dólares cujo rosto está invisível por trás do vidro fumê, suscitando no observador mil fantasias, seja na deliciazinha recém-banhada, recém-enxugada e recém-vestida que acabou de descer para o mundo apenas para que este pare enquanto ela passa.
Não, não há, nem pode haver, dúvidas. Todo ser vivo neste planeta merece ao menos cinco minutos de reflexão. E de prosa. (Não, não me entenda mal — prosa sobre ele, não com ele. Nunca converso com estranhos na rua. Não, não é por medo de sequestro, não. É que nunca converso com ninguém, seja estranho ou conhecido.) E se o observador tiver uma quedinha que seja pela arte das letras, make it cinco dias. Ou a vida inteira, se você for um Proust.
Foi por isso que, como disse acima, fiquei surpreso com minha indiferença em relação ao morto. 
Não, não sou daqueles que de repente se fascinam por alguém assim que recebem a notícia de que esse alguém esticou as botas. Em geral a mudança de estado duma pessoa de aceso para apagado ou ativo para inativo ou on para off não provoca em mim reações particularmente perturbadoras. Não será a viagem de tal pessoa daqui para o além que me fará perder meu tempo mais do que já perdi quando ela estava viva. Morreu, vai para o arquivo morto. Já bastam os vivos pra me torrar a paciência.
Não, não pensem que apelo de propósito a esse tom ligeiramente jocoso, quase tendendo ao blasfemo,  para causar frisson. Sei que meus leitores têm vivência respeitável na lida com os livros e de certo já estão sobejamente calejados com situações em que um escritor precise recorrer a um bocadinho de frivolidade para não morrer — nem matar os coitados que o leem — de tédio. 
Mas, como dizia, pensando no morto agora, eis que me vejo meio que encafifado.
(Me desculpem, sei que soou como expediente mambembe de escrevinhador ordinário.)
E fico aqui sozinho, olhar perdido na tela, na mão o copo de Balla suado das pedras de gelo, me perguntando repetidamente, por que foi que ele sem mais nem menos atravessou a rua e parou à minha frente e, vendo minhas pupilas bailarem confusas ante a abordagem súbita, abriu um sorriso acolhedor, me estendeu a mão e perguntou "Como vai?" com a mais meiga das vozes que já escutei?
Atarantado de comoção, respondi "Vou bem! E o senhor?"
E ele: "Muito bem, obrigado!"
E, como dizem os tradutores de Balzac, emendou: "Aceita tomar uma geladinha comigo na padaria ali na esquina?"
Foi então que atinei que a minha mão ainda estava segurando a dele. E percebi também que o morto era daquelas pessoas que, quando nos cumprimentam, se recusam a flexionar a mão e os dedos e você fica com a impressão de estar apertando um pedaço de toicinho.
E, Christ! foi aí que de repente me dei conta de que a mão do morto, indolentemente a repousar entre a palma da minha mão e meus dedos, estava gelada como... como só a mão dum morto pode estar.
Lívido qual um personagem de Balzac, reuni forças para erguer minhas dançarinas pupilas até os olhos dele e, sem atentar se eram os olhos dum morto, agradeci, declinei o convite e voltei para casa, ambos cabisbaixos, eu e minha infalível Zezeí.

Ela, mais cabisbaixa que eu. Talvez seu sensibilíssimo instinto animal, que todos cantam e decantam, tenha captado algo além da minha anteninha atrofiada de observador já cansado de tanto observar?





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