Meu escritor particular

Tenho um escritor particular. Que me escreve todos os dias. E quando está sem sono — o que parece ocorrer com frequência —, me escreve todas as noites.
Às vezes, mais raramente, me faz poesia. Outras, bilhetinhos simplesmente.
Mas, seja em prosa, seja em verso, nem sempre entendo o que me diz.
Não, não. Ele não é complicado. Nem seus versos, obscuros. Nem suas digressões, metafísicas. Ou eruditas. Ou cripticamente filosóficas qual às dum Wittgenstein.
É que meu escritor particular não me faz rir. Nem chorar. Nem me deixa indiferente.
(Pensando bem, depois que começou a me escrever, rio menos. (Minto — nem rio mais. Agora me limito a abrir um meio sorriso, um sorrisinho pacificado, um sorrisinho de efeito duradouro.))
(Chorar, acho também que nunca mais chorei depois que ele passou a me escrever. Agora apenas lembro, divago e emudeço. Mesmo quando me vem essa dorzinha em algum lugar de mim de agora ou de mim de algum ponto no passado que me angustia quando me deito no escuro e fico de olhos abertos sei lá quanto tempo. (Dia desses a luz do sol começou a iluminar meu quarto e levei um susto me dando conta de que passara a noite inteira simplesmente olhando o escuro.))
Mesmo assim as palavras do meu escritor particular em geral mantêm meu sono através da noite. E sustentam minha ansiosa vigília ao longo do dia.
(À noite mal aguento esperar o dia; de dia mal suporto a demora da noite.)
Ele escreve palavras de significados que nem me importo muito em apreender. Algumas, juro, nunca vi. Mas, depois que as leio, não parece fazer diferença. Consultar um dicionário dificilmente me ajudaria. Quando as leio tudo que me interessa é essa impressão de que foram escritas só para mim. Acho que é por isso que fazem sentido mesmo soando estranhas. Mais que tudo, aprendi a perceber que as palavras dele têm um ritmo. É correr o olhar pelas linhas e sentir que meus olhos podiam sair dançando por uma avenida inusitada, em cujo destino mal vejo a hora de chegar numa viagem que espero nunca acabar. A princípio tudo parece desconhecido, só para no segundo parágrafo as palavras que jamais li soarem familiares como minha língua materna. No terceiro eis que deparo com a história da minha vida, a descrição dos meus sentimentos, a explicação das minhas aflições.
Suas palavras, mesmo incapazes de acrescentar um átimo de beleza verdadeira à esterilidade do meu mundo, ao menos transfiguram a feiura que me cerca e disfarçam minha desesperança, e a cada nova manhã por alguns minutos posso sonhar que sou capaz de renovar a vida (a minha própria, a dos outros, a do mundo) e por esses minutos fugazes poder acreditar que cada momento vale a pena ser vivido e cada mentira deve ser desmascarada e cada falso enigma, desvendado do avesso.
As palavras dele são, sobretudo, capazes de quebrar este desencantado encanto que me emudece.
Elas vicejam num jardim, esperando que ele comece a colheita. Não me iludo que as colha só para mim, mas elas mesmas vêm me ensinando que meu velho sentimento de posse já não tem razão de ser. Sei que ele é o escritor particular de todos que souberam permitir que fosse. E a cada manhã aprendi a aguardar um buquê formado de verbos, substantivos, adjetivos que, ao revelarem o perfume que ocultaram de mim até hoje, me deixam enfim avistar o mar encapelado que se revolta dentro de mim ao invés de se diluírem na atmosfera ao redor do meu planeta como ocorreu nos longos anos em que me deixei trancafiar em um porão qual a donzela austríaca por décadas feita amante prisioneira do próprio pai.
Depois que meu escritor particular passou a me escrever, decidi que não preciso mais ter cuidado. Aprendi que já não preciso duvidar do que vivi no passado, do que testemunhei contra minha vontade, das garrafas de champanha e dos frascos de remédio que sempre se quebram para virar navalhas.
Mas por que razão meu escritor particular me escreve tanto afinal? você talvez queira saber.
A primeira vez também me encafifei. E mal pude pregar os olhos aquela noite, me atormentando com a pergunta.
Por que, afinal?
Não tenho nada de especial. Não tenho nem sequer uma beleza, um charme digno de nota. Nem uma inteligência notável. Nem uma sensibilidade que chame a atenção dos outros.
E a angústia que não me deixou dormir aquela noite foi em vão.
Na manhã seguinte meu escritor particular respondeu a minha — e, imagino, a sua — pergunta assim sem mais nem menos, como se uma voz divina lha tivesse sussurrado no ouvido.
E a resposta dele foi assim:
Há muitos, muitos anos venho coletando palavras úteis e inúteis. Palavras que ato e desato, estilhaço e torno a juntar com saliva, nostalgia e descaso, palavras que encontro e perco. Busco-as nos dicionários e nas gramáticas e as amontoo dum jeito que é só meu e não sei se é por isso que raramente façam sentido. Apenas formam um retrato incompleto do que sou, do que vejo, do que espero, refletindo desordenadas o caos vespertino em que me afogo.
Quase todas as manhãs me pergunto, escrever para quê?
Se ninguém tenho a quem escrever?
Se escrever é uma das mais supérfluas atividades humanas?
Se escrever para ninguém é o que me cabe?
E mesmo assim vou escrever para você enquanto meus dedos tiverem vida.



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