Fúria? Você não viu nada

Um tal de Paul Walker esticou a canela da perna direita e a bota do pé esquerdo ontem ou antes, acho. Jamais tomaria conhecimento de tão momentoso fato não fosse ocasionalmente obrigado a dar uma espiada no site do Estadão e da, ugh, Folha e da, blegh, Veja. Entro e bato o olho nesse tipo de “notícia” e me dá vontade de. Vocês já sabem, não preciso completar.
Passo batido por manchetes que tais mas meus olhos são mais rápidos que o mouse e apreendem que o tal de Walker andou fazendo uns filmes aí em que interpretava um piloto de carros ou congênere. Menos um imbecil no mundo, me regozijei. (Não precisa chiar, sei que o regozijo é pecado mas assistir ao padecimento alheio foi o que restou da minha capacidade de auferir prazer.) E uns dois bilhões de imbecis teriam de ir pro saco para que surtisse algum efeito significativo no mundo. Vocês sabem que o que não falta por aqui é sujeito dessa estirpe. E olha que ainda faltaria enumerar os idiotas, os babacas, os selvagens, os petistas, os cinéfilos, pois é.
Mas hoje todavia dei porém uma passada na, bluargh, Folha e este meu olhar de águia ébria em voo rasante e entusiasmado e contínuo das nuvens rumo ao rochedo Cila fisgou uma manchete a respeito. Qual seja: “A polícia de Los Angeles pediu aos fãs da saga “Velozes e Furiosos” que parem de cantar pneus diante do local em que ocorreu o acidente de carro que matou Paul Walker”.
Vocês sabem que logo aos dois aninhos comecei a desconfiar que este mundo pode ser qualquer coisa menos justo. E que a partir de então minha desconfiança só fez cristalizar, até que, ao três, já estava cabalmente convicto.
Isso nunca me impediu entretanto de cair em estarrecimento sempre que o mundo cuida de me agraciar com mais uma prova de que é a injustiça que lança os dados de nossas vidinhas de formiga.
Fãs de Walker estão fritando os pneus de seus possantes e dando cavalos de pau numa estrada lá de Los Angeles onde o pobrezito virou churrasco após uma colisão.
Se fosse deus por um dia, estabeleceria uma regra para casos que tais, qual seja: quem quer que tivesse seguidores, simpatizantes, adoradores ou simplesmente amantes (no sentido lato), levaria toda a turma junto pra onde quer que essa gente vai quando morre.
Não, não me xinguem ainda. Nem riam. Leiam de novo. Tem gente que sai de casa e vai cantar pneus onde seu ídolo encontrou aberta a porta de saída do mundo. Convenham, o mundo tá assim de gente, apesar das guerras cada ano mais cruéis e das epidemias cada mês mais devastadoras e das tevês cada dia mais emburrecedoras. Daqui a pouco haverá nada menos que dez bilhões de chinas só em Hong-Kong. Ou, pior, cem milhões de curintiano a disparar rojões no meu lindo céu de anil. Quando tal advento estiver se aproximando no horizonte, gente feito eu será obrigada a um harakiri básico. Vocês certamente não me trocariam por um presidente de torcida organizada (espero).
O Porsche vermelho em que Walker estava — no banco do carona — pegou uma árvore que se vingou botando fogo no bólido.
A notícia da, uegh, Folha é ilustrada por uma foto em que Walker está abraçado a Gisele Bundchen. A foto fez parte duma campanha publicitária.
Se fosse deus por um só dia, pois é.
Comecei a escrever este post absolutamente certo de que a preguiça mo impediria e então me veria livre para escrever o que gosto e o que posso. Ou a náusea. O nojo que não tenho como vencer neste novo mundinho emplastrado de golpes mercadológicos de sujeitinhos saltitantes incapazes de agir como indivíduos livres, eternamente ávidos por se mesclarem ao ectoplasma digital que vai se assenhorando do universo conhecido.
Há uns dias me lembrei de que minha mãe faria cem anos em treze de setembro. Não me senti diferente de quando faria noventa e nove. Se fosse dama da sociedade, alguém da família se encarregaria dum panegírico pomposo. Se fosse deus por um segundo, decretaria que todo ser que ama e é amado deveria levar seus amores junto.
Quando o poeta português Eduardo Pitta morrer qualquer dia desses, não, não vou ao local do óbito, provavelmente será em Portugal e nunca saio de casa, mas me comprometo a marcar condignamente o triste evento. Não, não vou planejar, não me dou bem com planos. Na hora apropriada decido. Desconfio que minhas exéquias serão apenas silenciosas. Se me sentir deveras saidinho, sou capaz de garatujar uns versos numa folha de sulfite e em seguida rasgar o papel com o máximo de estrépito possível na esperança de incomodar meus vizinhos cujas carcaças jazem e jazerão até o fim dos tempos diante de duas tevês de 500 polegadas.

Eu vi o tédio atravessar o tempo
atribulado da infância
e espelhar-se naquele rosto

disse Pitta.

Uma geração passa e outra geração nasce: mas a terra continua pura sempre. O sol também se levanta e o sol se põe e corre para o lugar onde se levantara.

citou Hemingway na epígrafe de The Sun Also Rises.
Antes de abandonar agoniado a página do jornal online, meus olhos de águia de mau agouro captam que “Fatia de bolo de Kate e William é leiloada por R$ 10 mil”.



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