Eleventh of the Year

Sábado de oceanos fervendo, selvas devastadas, pedestres a explodir em chamas sob o saara de 50 graus e os fantoches decapitados no feudo dos sarney e a receita de bolo de fubá de mamãe para sempre perdida na voracidade do cosmos. Vem cá, seja sincero(a), você não achava desde a infância que merecia uma distinção especial por conseguir sobreviver mais um dia? sob as violações pessoais da vida que te bombardeiam incessantemente até você desistir de tentar impor tuas vontades e se entregar ao abandono que a partir de então passou a ser o barco furado em que te agarra para se manter à tona? sob a força das coisas e do mundo que te obriga a renunciar ao comando dos teus passos, teu destino, teu rumo ou seja lá qual nome prefira dar a tal capitulação?
Ah, quanto esperei que alguém piedoso me puxasse pelo ombro e cochichasse “vem cá” com intimidade benigna e a boa-vontade dos predispostos ao bem e o amor dos capazes de amor imenso.
Só adulto fui ter noção de conforto. (E de outras propriedades humanas como segurança e confiança de que não quero falar e é provável que nunca fale, já tentei, tenho tentado mas não tenho ideia de como tratar desses dois temas cum mínimo de equilíbrio.)
Qual um garoto obrigado a empurrar um moinho de mandioca aos cinco anos ou uma guriazinha forçada a britar pedra no agreste antes mesmo de aprender a chorar, não, nunca tive noção de conforto. Por isso nunca soube me condoer desses dois serezinhos nascidos para servir feras. Eu mesmo nasci, embora desde muito cedo tenha optado por esgoelar contra as injustiças do mundo a servir as feras que me couberam. E me cabem ainda.
Pois, ao contrário dos pobres-diabos deste mundo afora que não têm opção, nunca aceitei cordatamente que delícias como o conforto estivessem além do meu alcance.
A infância muito cedo se revela o inferno para os nascidos numa selva oculta por tapumes de papel crepom estampado com paisagens tropicais e decorados com ubíquos vasos de samambaias de longas folhas sob o patrocínio de cortesãos de palha de dentes permanentemente à mostra.
Além de outras incontáveis – que talvez com a paciência que nunca tive e nunca terei – oh esperança que me abandonas! – um dia me anime a tocar –, tinha também essa sapiência, essa precoce, malsã e assombrosa sapiência de que não há vantagem em viver.
(O pano vai se fechar com insuportável vagarosidade, estou ciente. Que posso fazer?)
A descomunal, indescritível desvantagem da vida não é em relação à morte. Não. A cultura que esta sociedade doente nos entucha nos miolos nos deixa viciados em dicotomias como sinônimos/antônimos, branco/preto, certo/errado. Não. A desvantagem da vida é com a não-vida. A não-vida jaz jactanciosa no topo de todas as ideias e todos os pensamentos inconcebidos e inconcebíveis, além do que nos imaginamos aptos a conquistar e aquém do que nos sonhamos super-homens merecedores de mil dádivas imerecidas. A não-vida é inalcançável pelos delírios dos fracos que também muito cedo se entregam à tolice das alegorias. A não-vida é inconcebível pelos que vivem. É a antissemente. A anti-língua. Não há LSD que se lhe abra o caminho, não há crença ou fervor que se lhe permita um vislumbre.
Tendo chegado a este degrau nesta minha interminável escada (que, também assombrosamente, nunca me deixa exausto), podia parecer natural a tendência a desfalecer e, glória de todas as glórias, cair de costas das alturas.
Nos últimos dias dei de teimar que preciso voltar a uma praia, sentir de novo o cheiro do mar. Não vou morrer antes, não senhor. Ainda guardo aqui dentro cá pra tão só pra mim que eu e o mar temos alguma identidade. Como poderia me esquecer neste sábado de oceanos a ferver à minha volta? Vem cá, o mar te atrai, pra que negar? Dizem que viemos de lá. A ideia me dá frio no estômago, me imagino deslizando por entre monstros ancestrais inenarravelmente feios e sereias indescritivelmente sedutoras.
Deu pra ti?
Pra mim nunca haverá de dar. Quando der (será possível não dar para alguém que um dia lá longe desejou com todo seu ser fundar a seita dos não-viventes que no fim se revelariam capazes de encontrar a saída da selva?), talvez brinque de atrevido, sorrindo por dentro como faço a cada segundo, escarnecendo, deus, você é um pobre-diabo que não existe mas sou magnânimo o bastante para lhe dar corda.
Ele sorrirá de volta. Sempre sorri. É magnânimo o suficiente para reconhecer minha superioridade. Sabe que não existe sem mim.
Deu pra ti? deixarei que pergunte.
Sou eterno enquanto brinco, sou incólume enquanto penso.


Nenhum comentário:

Postar um comentário