Encontro o poeta (chamá-lo poeta
não faz dele poeta, apenas lhe dá um título pelo qual podemos nos
referir a ele; afinal exige que o chame de Fran, o que não haverei de
fazer, naturalmente; não tolero nomes afrescalhados.) Pronto, nem comecei já
me perdi, ô barata tonta que sou às vezes de vez em quando toda hora.
Melhor recomeçar, desta vez procurando
ser sóbrio e me conter HAHAHAHAHAHA!
Encontro o poeta cabisbaixo diante do
balcão do buteco, vou ter com ele.
Não exclamo oi, olá, bom dia, não exclamo
nada, não gosto de exclamar, não gosto de quem exclama. Me achego, encosto (sem
nem roçar no distinto, note), fico lá parado ao lado dele, duas estátuas
praticamente cadavéricas depois de mais um maudito natau au au.
A atendente retirante passa perguntando o
que vou querer, só então o poeta me vê ao seu lado. Não se surpreende ou se
espanta, apenas enruga o nazo, não se dá o trabalho de esconder que não sou
bem-vindo.
— Cometi uma barbaridade hoje.
Quem se surpreende sou eu. Não esperava
que se dirigisse a mim.
— Não me diga! Que foi que fez?
Suga o resto de vodka do copo, enxuga
os lábios com o punho da blusa de lã, faz um sinal com um dedo em direção à
retirante repetindo o pedido, respira fundo e se prepara para reunir paciência
e responder minha ultra-inteligente indagação.
Blusa de lã? Deve estar uns trinta e oito
graus à sombra PONTÃO DE EXCLAMAÇÃO
— Você não acreditaria se lhe dissesse.
— Acreditaria, sim. Ando muito crente
ultimamente ente t t.
— Nem eu acredito. — A mocinha vem com a
vodka, larga no balcão com a delicadeza e o profissionalismo próprios de quem
chegou à civilização antes de ontem e parte rebolando a bundinha apertada num
jeans em que deve ter entrado à máquina numa fábrica de salsicha.
O poeta agarra avidamente o copo e glup pi pi up!
Engulo em seco imaginando o fígado do
coitado tentando fugir do atentado à ordem pública.
— Mas o que foi que houve afinal? —
tento incentivar pra ver se desembucha.
— Ai ai ai... — geme. — Não posso nem
lembrar...
Na hora enxerguei as reticências
desfilando no ar, vi que a coisa tava braba. O poeta não me parecia um poeta
reticente ente teteter.
— Qualé, não pode ser tão mau acim —
tento um novo incentivo. (Puta merda, como sou paciente.)
Vejo que botou reparo no meu
"acim" e seu semblante mudou. Na verdade desanuviou como o daquele
galã na novela das oito nove dez. Se soubesse teria usado esse subterfúgio
antes.
— Fui ler Pessoa escutando Beethoven.
— Sei — respondi, me arrependendo
incontinenti ente ter te. Sou uma anta. Agora que ele não abre mais a boca.
Mas pra minha sorte todavia o poeta não
se fez daquilo que todo mundo se faz nessas horas.
Meramente continuou:
— Sabe o que é pior?
Nem imagino o que deve ser pior prum
doido que nem esse e faço que não.
— O pior é que era o Beethoven aquele.
— Hm-hm — logro um feedback mínimo.
— Mas sabe o que é o pior do pior? O
poema que estava lendo era o poema do Pessoa aquele.
De repente presto atenção na algaravia
festiva reverberando dentro do buteco, digo, me sonté, digo, bom, numa tabacaria. Por um
átimo ti mo imo tenho um vislumbre do que é ser maluco. Suo freio, feio, frio.
Por quê? Nem imagino.
Decido aguardar. Dificilmente o poeta
aceitaria outra pergunta cretina.
Dá certo:
— Sonata ao luar, cara! — A voz se
sobrepõe ao alarido da algaravia do buteco ia eia ia. Como naqueles filmes babacas,
tive a impressão de que todos emudecem e olham em nossa direção.
Entrando na dele, pressinto que o resto
haverá de vir naturalmente.
— Mas não o primeiro movimento da Sonata,
saca? O segundo! O presto agitato!
Arregalo os olhos tentando demonstrar
algum feeling. Embora não esteje jejua sacando lhufas, claro. De algum modo,
entretanto, soube que o restante ainda viria à luz ia iaiá.
Vem:
— Tem ideia do poema do Pessoa?
Faço que não.
— Puta que pariu. Foi nada menos nada
mais que "Sonho. Não sei quem sou"!
Então me lembro que o mais próximo que
cheguei da verdadeira arte foi um show do Jô Soares que meu vizinho Iolando e ter nam ento iolando me
levou praticamente à força faz uns anos. Aí resolvi comprar aquele livro dele,
como é mesmo o nome...? Bom, você sabe qual. Li quase três páginas, peguei no
sono e no dia seguinte dei de presente pra minha tia Ernestina, que muito
provavelmente desfolhou o livro e usou as folhas às vezes de papel higiênico.
É em torno do banheiro da minha tia
Ernestina que meus pensamentos dançam quando olho à minha volta para ver que
estou pensando sozinho. O poeta se escafedeure-se. Tenho certeza de que foi
curtir sua solidão em ambiente mais infenso a alaridos, burburinhos e que tais
ais ui ais.
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