Estou lendo um
artigo sobre o poeta americano James Dickey.
O artigo é mais
ou menos velho. Precisamente, de 1966, vejam vocês. Trata-se dum delírio,
obviamente. O mundo não existia em 1966. Foi inventado pelo google em... Bem,
sei lá quando foi que o google inventou o mundo. Vocês aí que vivem no mundo do
google que se virem com a data da invenção do mundo.
Vejam de novo,
de minha modesta parte nasci em 1954. Poizé, se 1966 já era o nada, 1954 então era
menos ainda. Que é que pode ser menos que isso? Pré-nada? Talvez. Em todo caso,
não muda nada. Pois eu ter nascido não fez nem faz diferença alguma pra ninguém, provavelmente nem mesmo pra mim.
Nos tornamos
seres a-históricos. Sim, infelizmente serei obrigado a rezingar pela enésima
vez sobre o mundo online. Peço desculpas.
Até pouco antes
do domínio do google e do face, lá por 1925, 2003, por aí, éramos não apenas
aquilo que os outros viam que éramos mas um amontoado de fatos e eventos e
experiências alheias que vieram se acumulando antes de nós e antes de nossos
pais e assim por atrás. Ouso mesmo afirmar que tínhamos uma dimensão...
relativa. Éramos aquilo que estava ali naquele momento naquele lugar que, em
parte ao menos, era produto duma gororoba do que tinha restado dos seres de
ontem. Lembram do “generation gap”?
Não lembram, claro, isso é coisa de museu. Generation gap foi como ficou
conhecida a ruptura entre a molecada que chegou à adolescência e à mocidade lá
pelos idos de 1950 e muitos e 1969 e poucos e a geração anterior. Foram uns
vinte anos, pouco mais, pouco menos, em que os beats deram o ar de sua graça (alguns
deles não tão graciosos como gostaríamos de desejar), a geração anterior àquela
de todo mundo que teve o azar de vir ao mundo antes de o império das drogas e
rock&roll nascer e de Kerouac escrever seus livros e toda aquela merda
desaguar na porra-louquice dos hippies que faziam o amor e não faziam a guerra
e não tomavam banho e moravam em comunidades onde levavam sua promiscuidade ao
ponto de transarem com os próprios filhos, muitos deles infantes e até bebês. Há
mesmo casos de pais que assassinaram seus filhotes de dois, três, quatro anos com
doses letais de LSD. De minha modestíssima parte, só muito depois vim a saber
que na maioria esses hippies eram meramente ladrões e assassinos e em nada
diferiam de Charles Manson, o psicopata que estripou a atriz Sharon Tate, então
esposa de Roman Polanski, e vários dos amigos dela. Logo depois Polanski seria
acusado de abusar duma garota de 13 anos e se viu forçado a fugir para a
Europa, onde vira e mexe recebe homenagens como a prestada há uns anos pelo bocó
Harrison Ford. Pra você que ainda não aprendeu, a diferença é essa, se você é
ricaço ou “artista”, transgrida, viole, desbunde à vontade, o sistemão
corporativista virá correndo te dar cobertura. (Minha cabeça já começou a
preparar um textículo ajambrado sobre o tema, que trarei a público assim que
estiver pronto. Será, como todos meus épicos, do arraso e não deixará em pé um só
desses impostores que posam de mocinhos nas telinhas mil da indústria cultural
e que na vida atrás da tela são puramente bandidos.)
Como todo mundo
com mais do que banha na cachola, tive o particularíssimo prazer de dividir um
generation-gap com meu velho pai, cuja fulminante eclosão se deu lá pelos idos
de meado de 1969, quando enlouqueci ao me ver boiando no espaço sem nenhuma
referência geracional e ele entrou em parafuso diante da subversão natural da
hierarquia entre pai e filho. Eu com 14, ele com 60. Ele com a infância e a
adolescência devotadas escravocratamente ao jugo do pai imigrado da Itália, eu
com minha cabecinha eclodindo sob milhões de caquinhos na bandeira de alforria
universal desfraldada pelos Beatles. Ele não sabia que na virada do século, 70
anos antes, os expressionistas já tinham exposto ao mundo nossas tripas mentais
e dejetos espirituais e Freud virara do avesso as noções burguesas da família
nuclear que vamos enfartando em nossa luta para tentar salvar e Kafka escancarara
o esgoto cuja aca que ainda hoje tapamos o nariz fingindo que não é conosco e
eu não imaginava que os Beatles fumavam maconha e compartilhavam sua distintas esposas entre si
e faziam troca-troca no banheiro entre as sessões de gravação.
Pobre papai, um
miocárdio entupido resumiu sua vida. Todos acham que se foi cedo demais, 62 negros
invernos. Tendo a achar que não. Você sabia que em pleno império do google e do
face mais da metade de humanidade ainda vive na Idade Média? Não, claro. E,
olha, não sei se te culpo. Pois eu sabia. Pois eu sempre soube. Então por que você
não haveria de saber? Mas também tendo a ser compassivo. Essas facilidades
todas, né? Pega o cel, sai cutucando as teclinhas, bip-bip aqui, tic-dac acolá,
haverá delícia maior que exercitar a frivolidade? Não, não haverá. Olha lá o
comportamento do nosso führer Lula da Silva em cima dum palanque, não é ele o epítome
da presunção, da arrogância? Dizem os áulicos que Lula é diferente. Não. Seria
diferente se subisse num palanque e não hipnotizasse o povão com seu populismo
deslavado. Se não incitasse o ódio contra os adversários. Se reconhecesse que
todos, sem exceção, inclusive o führer, somos obrigados a baixar a cabeça à
história.
Tinha esse
caderno onde anotava umas coisinhas do meu dia-a-dia e papai ficava morrendo de
curiosidade. Isto é, na medida em que um homem podia morrer de curiosidade
naquela época.
Puta merda,
pai, era tão simples chegar e perguntar qualé. Não duvido que a pergunta me
desarmasse a ponto de ceder e compreender e aceitar.
Não, você sabe
que não tô fazendo média. Você me ensinou que não devemos fazer média. (Olha
que tentei algumas vezes, quebrando a cara em todas.)
Sei, no fundo,
no fundo, sei...
...que minha
correspondência com o mundo te deixava encafifado. Quiçá, enciumado. Que é que
eu escrevia tanto, né? (Olha, pai, até hoje não tenho a ínfima ideia do que é
escrevo tanto.)
Talvez fosse
apenas pra te enciumar. Hoje parece que aprendi que nós humanos somos capazes
de atos inimaginavelmente cruéis.
(Os golpes da
tua enxada nas touceiras de capim entre os pés de café na tua infância a
arrancar torrões de terra vermelha na tua adolescência, pá pá pá, os escuto.)
Você não diria
que é tardia esta compreensão. Por que nunca captei a cordura da tua voz?
Pra quem não
teve uma voz, teus dias foram até longos.
Pra quem não
teve ouvidos, os meus foram inúteis.
Comecei
escrevendo pensando em soltar um desses meus gritos mudos.
Pra quem não
tem ouvidos, de que adianta?