Distraído, cabeça
embaralhada, mosquitinhos de pensamento pousando arredios no passado, lembranças
ciscando grãozinhos mnemônicos, premonições e projetos irremediavelmente
malogrados e anseios incertos.
As fotos
estavam na gaveta desde que nasceu. Vai passando duma mão à outra.
De repente uma
delas parece se iluminar. Tem luz própria. Aperta as pálpebras, olhos ofuscados.
Entra em torpor.
Sai. Entra. Os olhos piscando, a acompanhar o espírito na gangorra. Dúvidas tentam
se intrometer na letargia, espanta. Uma confusão intrusa se interpõe no caminho
do seu mundo.
O esplendor imagético
se atenua. Fita a foto, vê com fria clareza, com a mais inédita das certezas.
Está apaixonado.
Quem será esta moça?
Moça, não:
anjo.
Nem imagina. Mas
já sabe que ela nasceu para um propósito. Um propósito redentor.
Mais: uma missão.
Salvá-lo do passado. Salvá-lo da vida. De si. Tem diante dos olhos a Reveladora
da Beleza Insuspeita. A Desnudadora da Energia Adormecida.
O objetivo que
nunca houve cria-se de repente. Precisa realizá-lo. Agora sabe. No fundo, sempre
soube — nem tudo foi em vão.
Um entendimento
cabal da religião desce do espaço, cobrindo o terreno árido e desolado do
ceticismo intolerável.
Está
apaixonado. Precisa estar. Precisa amá-la. Tê-la. Concretizá-la. Tomá-la nos
braços e esquecer.
Só então lhe
ocorre que não sabe quem é aquela de rosto angelical estampado no pedaço de papel. Nunca a viu. Será da família? Prima
distante? Colega de escola dum tio, um primo já morto?
Atira o maço
com as outras fotos na gaveta aberta, sai correndo para a sala. A irmã mais
velha está vendo tevê.
— Quem é esta
na fotografia? — Segura a foto diante do rosto dela, intimando.
A mulher tem um
sobressalto, franze o nariz e a boca em desagrado, resmunga. Se refazendo,
bufa. Incomodada, apanha a foto para enxergar mais de perto.
— Um... um... ...parece
a... Não... deve ser... ...sei não...
Coça o cocuruto.
Matuta.
— Vá perguntar
ao seu pai.
Ele puxa a foto
da mão dela, aperta os passos rumo ao quintal.
— Quem é? —
Estende a foto ao pai.
O velho apanha
a foto, aproxima do rosto, roça a cabeça com a ponta dos dedos. Finalmente abana
a cabeça, meio decepcionado consigo mesmo. Parece se culpar pela lembrança
fraca.
Ninguém sabe de
onde veio a foto.
Sua última
esperança é a mãe. Que está lavando roupa. Sim, ela certamente sabe.
Ele dá a volta
pela casa rumo aonde ficam os tanques.
— Claro que sei!
— a mãe exclama triunfal.
Ele sente um
aperto sublime no coração. Está salvo.
— Quanto tempo,
nem me lembrava mais desta foto...
Ele prende a
respiração. O aperto no peito vira um nó.
— Olhe — explica
a mãe — esta aqui no fundo é minha colega de escola Izildinha. Morava na casa
aí ao lado. Morreu de tuberculose, tadinha. Tão nova. Uma gracinha. Uma
judiação. E esse aqui ao lado dela, será o... Sim! ele mesmo. O Nando. Nunca
mais vi.
Sorrindo sob o
efeito das lembranças, ela devolve a foto ao filho.
— Benzadeus, nem
me lembrava mais que era tão bonita. Ah, tinha uma porção assim de
pretendentes...