Okay, vou
manerar, vocês aí têm um coração tão fraquinho, não têm? Não gosto de judiar,
não. Pelo absolutamente contrário, me considero um dos seres humanos dotados
com a maior compaixão do mundo pelo padecimento alheio. Até fiquei doente de
tanto sofrer pelos outros.
Seguinte.
Estou na minha,
chega esse sujeito.
Peraí, antes
uns antecedentes.
Fiquei sem luz
em casa e fui no vizinho perguntar se ele conhecia algum eletricista e ele me
dá um cartão e ligo. Tão aí os antecedentes.
A campainha não
toca porque tô sem força. Batem na porta, batidas vigorosas além da conta,
parece de alguém tentando demonstrar masculinidade.
Abro a porta,
nossos olhares parece que faíscam. Estou acostumado. Ele, parece, também.
Resmungo boa
tarde, ele resmunga de volta.
Fecho a porta e
me volto para ele, que já está preparado esperando minha abordagem.
Fiquei sem luz.
De repente? ele
quer saber.
Olho pro teto,
penso alguns segundos. Que porra de pergunta é essa? Ou você sabe que o governo
vai cortar a luz e fica esperando ou a coisa se dá de repente, não tem terceira
alternativa.
Ele parece
notar que estou ruminando um resposta e resolve se antecipar:
É o sistema.
Que é que vou
fazer? Uma afirmação dessas requer uma interrogação:
Que sistema?
Elétrico.
Me regozijo com
a resposta sumária. Tem uns eletricistas aí que curtem fazer rodeio pra esnobar
pra cima de nós leigos.
Dá pra
consertar?
Minha pergunta
provavelmente salta umas trinta etapas na entrevista do cara. Vejo que ele fica
meio espantado. Não esperava deparar cum xifópago antípoda. Nem hoje nem nunca.
Sem se dignar a
conceder uma resposta, abre a maleta repleta de mistérios e tira uma lampadinha
e pergunta, Onde é o relógio?
Ergo um braço e
aponto um dedo (não muito esticado; a gente nunca sabe)
Ele vai no
canto da parede, abre a portinhola e se põe a auscultar.
De repente se
volta na minha direção e dá o xeque-mate:
Não é o
sistema.
O que é, então?
Um curto. Um
curto em algum lugar.
Onde?
Puta que pariu,
não consigo refrear minha ansiedade. A pergunta imbecil escapa desta minha boca
de caçapa.
Aí é que está,
ele diagnostica.
Será que dá pra
arrumar?
Dar, sempre dá.
A questão é: quanto tempo leva.
Quanto tempo
leva?
Depende. Que é
que o senhor estava fazendo quando a força acabou?
Liguei o
liquidificador.
Posso ver?
Claro. Por
aqui, por gentileza.
Conduzo ele à
cozinha. Indico o aparelho. O copo do liquidificador está cheio pela metade.
Ele fareja.
Parece identificar um cheiro familiar.
Ah, o senhor
estava preparando uma kaipiroska...
Esse calor e
tudo mais, não há cristão que aguente.
Eu que o diga.
Dia inteiro na rua...
Não sei como o
senhor aguenta...
Fazer o que,
não é mesmo? A gente precisa ganhar o pão de cada dia.
Nossa! Quanto
tempo não escuto esse dito popular. Olha, até me arrepiou.
Eu entendo.
Também me ligo em memorabilia.
Ih, me arrepiei
de novo! Nunca pensei conhecer de perto alguém que conhecesse essa palavra!
Posso confessar
uma coisa?
Até duas.
Saquei assim
que o senhor abriu a porta...
Ai que me
arrepio mais uma vez! Posso dizer uma coisa também?
Vai fundo.
Eu também
saquei...
Eu sabia!
Sabia! Saca só como fiquei!
Que você acha
de eu coar a infusão mesmo sem bater?
Vai fundo, cara.
O que menos me preocupa a esta altura é filtro.