Hoje vou controlar meus despautérios e
começar do começo, que é de onde todo Ente que é decEnte começa.
Estava ontem à tardezinha pensando nos prós
e contras da democracia quando Sô chegou e sem mais nem menos como sempre faz
disse que preciso duma tatu e um piercing.
Lá.
Rio divertido. Sô é a única pessoa em
todo este grande mundo capaz de me divertir. Em casa nunca tinha diversão, papai
era sisudo, deixou todo mundo sisudo. Quer dizer, fazia piadinhas quando tinha
visita. Então se mostrava bastante espirituoso. As visitas nos visitavam muito
raramente. Era uma pena e um alívio. Eles conheciam uns velhotes que pareciam
sair duma catacumba quando entravam em casa. Fala boa-noite pra tia-eva,
impunha mamãe. Boa noite, tia eva. Diz boa-noite pro tio-primo. Boa noite, tio
primo. Depois vinha um monte de giocondos.
Não, sério, é louco ou não é? Democracia e
piercing na ponta da glande, onde mais você encontrar-ia tal especiar-ia senão
no Mais Brilhante Blog da Terra?
Pedi pro Jorge pôr e ele pôs.
Sim, Sô voltou com o cara. Ô praga de taxista.
Virou chofer particular, dia inteiro atrás dela. Se tivesse aonde ir, também
arrumava uma taxista pra me servir.
Você nunca perguntou se transamos no
banco de trás do táxi?
Transam?
Ah não! Quero que pergunte no duro. Deboche
não vale.
No duro. Transam?
Transamos.
Não transam.
Transamos, sim.
Transam porra nenhuma. Te conheço. Você
só transa na cama. Como eu. Por isso me escolheu. Quer dizer, entre outras.
(E porque não obedeço caninamente a todos
seus caprichos, penso baixinho.)
Sandy e Lucas revelaram o sexo do bebezinho.
Quer saber qual?
Qual?
Não digo.
Tudo bem.
Digo, se me pedir com sinceridade.
Qual?
Vai se foder.
Me fodo desde a tenra infância, nenê.
Tô ficando cansada desse teu arzinho de fernando-henrique
boiola.
Você acha que o FH é bicha?
Claro. Todos esses ricaços são.
E o Lula?
Ah, o Lula enricou depois de velho. Mas pode
dar o rabicó, com jeitinho.
Pra quem acha que o Lula daria o
asterisco?
Prum bacanão, claro. Mas não um desses
que meteram a mão na grana depois de adultos. Um da nobreza. Como é que você
diz...?
Quatrocentrão.
Isso. Lula daria o rabo prum quatrocentrão.
Quem é quatrocentrão, aliás?
O próprio efeagá é.
Ah não, o Lula nunca daria pro efeagá. Nem
pro Eike.
Um descendente de dom Pedro, talvez?
Só. Cairia de quatro implorando pro dom-pedrinho
meter a nobiliárquica tronchinha do seu cuzinho de operário experto.
Cristo, preciso duma sessão espírita
depois dessa.
A mulher do Jorge é médium. Já tentei te
levar, você não quis.
Me deu vontade de lavar a mão.
E eu que fiquei limpando sardinha até
agora. Sente só.
Ela aproxima as mãos do meu nariz. Agarro
ela pela cintura, lhe dou uma dentada na tetinha esquerda. Vocês de certo se
lembram que Sô tem teticas pititicas. Uma das razões por que a amo.
Senta no meu colo, começa a se esfregar. Empurro
ela pra longe. Esfregação não dá.
Meu pensamento ainda está ancorado na
democracia. E de lá não haverá de sair, sei. Democracia é tão-somente um
pretexto, obviamente. Queria falar mesmo é da minha Dor, com maiúscula. Mas Sô
não tolera, dorzinha, dorzona. Vocês na certa acham que ela transa com o pai
por obrigação. Não. estou cada dia mais convencido de que quem seduziu o cara
foi ela. Quando assiste aquelas historinhas trágicas no Datena, se esbalda de
rir. Não entenderam nada, decreta. Você acha que é frescura? Pergunto. Não, é
incapacidade de viver. Viver a vida, a única vida que temos pra viver, a vida
que ganhamos ao nascer. A tatu, pelo menos?
Ai fofa, tenho tanto nojo de tatuagem. De
quem se tatua. É tão bovino, não é? Me lembra gado indo pro matadouro.
A ideia é essa mesmo, benzinho.
Se eu fosse pro matadouro, você ia
comigo?
Claro que não, né?
Aí é que tá, minha linda. Preciso duma
mulher que tope morrer ao meu lado.
Você que já pediu a comiseração duma
mulher sabe que não tem como não sair pela culatra. O efeito imediato é o
desprezo. É a forma que elas têm de nos aplicar uma tunda.
Fui no gine à tarde.
Não era mulher?
Era, mas na hora de marcar a consulta decidi
que nada a ver mulher médica.
Concordo. Mulher psicóloga, não tem
melhor.
E pedagoga?
Não! Dietista! Não tem quem ganha.
Presidenta?
Melhor, taróloga.
Não sei o que fiz pra merecer uma mulher
antifeminista. São elas que detonam o “movimento” com mais competência e argúcia.
Estão infiltradas. Veja Camille Paglia descendo a borduna nas militantes, é de voltar
a ter um tico de fé na capacidade da humanidade em aprender a evitar o
automassacre.
Diz a verdade, meu anjo. Não sou velho
demais pra você?
Não.
Não acredito.
Eu sei.
Não faz assim.
Faço.
Seja sincera.
Sou.
Sou ou não sou?
Já disse.
Diz de novo.
Já disse.
Preciso que diga de novo.
Você não é velho demais. Só bobo demais.
Sou.
É.
Me ensina a não ser.
Não sei.
Eu sei.
Então não peça.
Se não pedir, que é vou fazer?
Que tal ser o homem que é e sempre foi?
Sou homem suficiente pra você?
É. Quando não tenta ser o que não é.
Quando é que não tento ser o que não sou?
Quando tô na pia limpando sardinha e olha
minha bunda sem pensar que tenho dezesseis anos.
Minha data de validade expirou há uns
quinze, vinte anos, no mínimo. Foi sobrevida depois de Sô. Nada de que me regozije,
porém. Minha sobrevida começou no meu primeiro minuto.
Ela nunca permite que eu toque no
assunto. A garota de dezesseis anos que transa com o pai me acha mórbido
demais.
Um neurótico que dedica a vida a meter o
bedelho na vida dos outros, espionando, denunciando a si mesmo a farsa da vida
alheia de que em sua soberba de cientista solitário imagina ter a fórmula,
condenado a explicar, nascido para apodrecer enquanto se rejubila por seu papel
de condenador.
Num faz essa carinha, benzinho. Me dá
muita peninha quando vejo essa sombra negra passar nesses olhinhos aflitos. Olha,
sou eu aqui no teu colo. Você é meu urso peludo. Meu protetor. Meu homem.