Penso teus
pensamentos
Falo tua voz
Ouço teus
ouvidos
Olho teus
olhares
Psiu!
Respiro teus
cheiros
Mordo teus
dentes
Escuto teus ruídos
Engulo teus
goles
Ei! Psiu!
Agora não!
Ando teus
passos
Dobro tuas
esqu...
Posso falar
agora?
Desembucha duma
vez. Que é que é tão importante?
Não precisa
ficar tão bravo, cara. Afinal fui feito pra você. Só pra você.
Desculpaí. Mas você sabe que saio do sério quando me interrompem. Inda mais no
meio dum poema.
Puxa, não foi
por mal. Mas, cá pra nós, a interrupção até que foi providencial, diga a
verdade...
Que insinuação é
essa? Está dizendo quê...
...que você
anda abusando das reticências nos últimos tempos...
Nem me fale. Tem
hora, não consigo evitar. Tô ficando preocupado...
Não dá
simplesmente pra digitar um pontinho só em vez de três...?
Dar, até que dá. Mas,
sabe como é, deixar os pensamentos assim no ar... inacabados... abrindo aquele
monte de possibilidades... de sentidos... sugerindo ao invés de pontificar...
Chega, pelo
amor de cristo! Acho que prefiro os pontos de exclamação!
Certo, mas
vamos cortar o bullshit. Não costumo discutir minhas técnicas literárias com
terceiros. Muito menos com... com...
Vamos! diga! Seja
sincero uma vez na vida!
Sou sempre
sincero. Se não percebeu até hoje, debite à sua insensibilidade.
Era só o que
faltava! Exigir que seu seja sensível. Quer que lhe sirva um chope e uma porção
de fritas com torresminho também?
Já disse tudo
que queria? Me ofendeu o suficiente? Pode me dar licença agora?
Puxa vida,
depois de tudo que fiz por você até hoje, podia ao menos me escutar uma vez por
semana. Se não for com você, com quem mais posso desabafar?
Mas tem de interferir
bem no meio da feitura dum poema, tem?
Aliás, interferência
bem-vinda, né? Ou vai dizer que não? Volta lá no início...
Tá legal, foi,
reconheço. Quantas vezes já lhe disse que a inspiração é visitante inconstante,
arredia, reticente... e não companheira fiel e permanente ou cúmplice obediente
e muito menos amante sem pudor? Embora, você haverá de convir, a introdução, “penso
teus pensamentos”, não é de jogar fora. Mas agora perdi o pique, não importa
mais. Diga duma vez por todas o que posso fazer por vossa senhoria?
Puxa, cara, não
tive a intenção, não precisa apelar pro sarcasmo, é que tava aqui atrás
olhando, pensei que fosse apenas uma brincadeirinha, tipo exercício matinal,
entende? Tantas vezes fui testemunha ocular quando você escrevia uma bíblia só
pra apagar tudo em seguida...
Tô esperando...
Bom, é quê...
hm...
Hm...?
Bem... ã...
Fala, porra!
Tô cansado.
Sei.
Isso é tudo que
tem a dizer, “sei”?
Sim.
Você é muito
cruel, cara. Muito demais da conta. Nunca pensei.
Tá bom, me
desculpe de novo, ando excessivamente nervoso ultimamente, você sabe.
“Sei”.
Puta que pariu,
vai ser chato assim na china, porra!
Também, com
esses quarenta graus à sombra, quem é que aguenta, né?
Parabéns,
finalmente uma observação relevante. Pois é, tá todo mundo meio fora dos eixos
com essa canícula.
Mas pior é a
minha situação, concorda?
Tem razão, vejo
que não é nada fácil pra você. Mas, convenha, também tenho rodado em círculos. Aliás,
desde que nasci.
Mas você ao
menos pode dar um rolezinho por aí quando fica de saco cheio. Você e essa mistura
de chiuaua e dobermann que chama de cachorro. Eu, nem isso.
Lamento por você,
cara. Sinceramente. Mas que é que posso fazer? Cada um nasce com sua cruz.
Uau, pensamento
nada original, esse. Vindo dum escritor...
Tá bom. Tchau. Agora
preciso escrever. A gente se cruza.
Tô cansado de
girar, cara. Exausto, na verdade.
Já disse que
lamento. Até a próxima.
Posso lhe pedir
um último favor, Dave?
Pode, se não me
chamar nunca mais de Dave. Meu nome não é Dave. Você sabe que perco a cabeça
quando me chama de Dave!
Calma, Da...
digo, desculpaí, cara. Posso pedir então?
Fale logo, por
alá!
Promete não me
trocar por um ar condicionado mesmo se um dia tiver dinheiro?