Já disse 4.592 vezes que cansei de temer.
O olhar alheio, o trovão, o rojão, desprezo, sangue.
Bru-u-u, que medo de sangue. Pensar que o
conteúdo dessa poça no chão, dessa bolsa estufada de líquido escarlate passou
pelo meu cérebro, minhas veias e artérias, meu rim (só tenho um), meu fígado,
meu saco, meu coração.
E que odor indescritível tem. Tão indescritível
quanto sua cor (não, escarlate é só força de expressão), tão indescritível
quanto pensar que é ele que nos diferencia dum boneco de inflar.
Certa vez desmaiei extraindo sangue. Quer
dizer, depois de extrair. Enquanto a mocinha enfiava a agulha na veia do meu
braço, enquanto a mocinha sugava o sangue do meu corpo, fiquei impávido. Até me
congratulei em pensamento. Sou muito macho, pensei. Tive a impressão de que
todos em volta sacolejaram as cabeças em minha direção, me felicitando. Uau,
sou um herói, me vangloriei, ainda internamente. Quando me vi inteiramente em pé,
a mocinha e outros badulaques que havia na sala adquiriram aquela perspectiva surrealista
tão denunciadora de que há algo muito errado no mundo. Acordei no hospital.
Desprezo,
bru-u-u-u. Que
há de mais assustador? Deix’eu pensar... Pensando... Pensei.
Não nada mais assustador.
Inda mais depois que descobri que não sou
infenso ao desprezo.
Tudo bem, ninguém é, acho. Mas tenho
certeza de que sou menos que todo mundo.
Até os vinte, trinta no máximo, me achava
imune a coisas desse tipo. Me sentia autossuficiente, vê se pode tamanha
ingenuidade. Taí uma coisa que meus pais deviam ter me ensinado. Filhote, não vá
crescendo pensando que está a salvo do desprezo. Ninguém está. E você, com essa
fucinha de sofredor hipersensível, menos ainda, provavelmente.
Provavelmente, papá e mamã. Nunca mais
quero desprezo na minha vida. Dá pra vir me salvar agora?
Rojão, u-u-u-u-ghhh. Que excelso deleite partilhar da alegria dos corintianos quando o timão ganha. Sabe o que eu mais
queria? Que, quando o craque aquele fizesse aquele golaço, cada um dos
torcedores enfiasse aquele canudo no rabo e detonassem todos num só riscar da
pedra do isqueiro. Minha Zezeí também é fã dessas comemorações animalescas. Tanto
que a cada salva de estampidos se enfia debaixo da cama, pronta pra ter uma síncope
e cair durinha de medo. E, o melhor de tudo, vem aí a copa, que, como todos
sabem, é e sempre foi nossa. Os fabricantes de fogos já devem estar estocando pólvora
às toneladas para o grande evento. Espero sinceramente que nenhum dos
envolvidos nesse esquema de enlouquecer cidadãos pacatos vá pelo ares. Seria uma
judiação. Melhor ainda é que antes da copa teremos os folguedos juninos, assim
não precisaremos esperar tanto para que os alucinados nos deixem ensandecidos a
todos.
Quanto ao trovão, de minha parte, curto. Pacas.
Ao contrário da minha pobre Zezeí. Ela é muito tontinha e aparentemente não
distingue o estrépito seco e estéril dum rojão e o ribombar bar ar carregado de
poesia duma boa trovoada. Já tentei lhe mostrar a diferença, em vão. Pequena
minha, rojão faz um barulho nojento, puf! e some, tão efêmero quanto aquele
brilhozinho de traque impotente. O trovão, dio mio, o trovão vai ecoando pelo
interior da nuvens a nos presentear cuma imagem gráfica da infinitude dos céus.
Quando o bicho rebenta lá em cima, nos sentimos tão infimozinhos, não é mesmo? Mas
não é à toa, não, minha fofa. Aquele fragor dos infernos é só pra nos mostrar
que, se deus existisse e tivesse uma voz, essa voz seria o trovão. Sim, mais ou
menos como os índios se sentiam antes que os europeus viessem com suas
invencionices cientificóides e vazias.
Quanto ao olhar alheio, não sei bem por
que botei ele na lista. Estou até pensando em deixar esse pra você.
E, quando mais não fosse, enquanto
escrevo vou escutando Peer Gynt e de repente perdi totalmente a vontade de
continuar com a brincadeira.
Sim, taux sabendo, é frustrante. Até que
tava indo bem, não tava?
Olhar alheio... Que é que posso dizer a
respeito?
Acho que no momento, nada. Sorry. Grieg é
sublime e arrebatador, não deixa espaço pra futilidades deste naipe.
E se passasse a bola pra você?
Que tal?
A mim, olhar alheio causa um indefinível,
infindável frisson, podia passar a noite falando dele.
Prefere bastão? Sem crise.
Toma aí.