Papa, vou
calçar meus patins eletrônicos, vou te pegar aí na tua nova velha casa onde a
farsa está proibida de entrar, então vamos os dois reviver nossas vidas, cuma
diferença, papa, agora teremos um teclado cibernético e um mouse metafísico
entre nossos dedos e seremos capazes de refazer tudo aquilo que fizemos de
errado a primeira vez, a começar da mamadeira que você nunca aprendeu como segurar
em meus lábios murchos e os cutucões que lhe dei instintivamente tentando te
acordar pro teu papel de pai.
Papa.
Meu domingo amanhã vai ser assim.
Vou passar no Extra, pegar três garrafas
de Smirnoff, um saco grande de gelo, uma geladeira de isopor, um frango assado
com muita farofa, arroz com bastante batata-palha, talvez polenta frita (vou
decidir na hora). Se tiver, uns salgadinhos tipo pastel (você sabe que só gosto
de carne), umas coxinhas, esfirras, empadinhas, enroladinhos de queijo e kibes.
E tomara que tenha croquete, que é, como você também sabe, meu xodó. Se tem uma
coisa no mundo que não entendo é quando alguém diz que não gosta de croquete. Como
é que pode? Ainda hoje me sinto quando tinha cinco anos e escutava alguém dizer
que era louco por couve. Como é que pode? me lembro claramente do meu espanto.
Ah, quase ia esquecendo do básico: o limão.
Dois quilos daquele galego, o mais azedo, o mais apropriado.
E, claro, também ia esquecendo o carro. Antes
de tudo, passar numa locadora e alugar um carro. Não! carro, não! Automóvel! Sempre
quis um automóvel. Alugado, saca? Que grandíssima pena que não terei como achar
um daqueles chevies da década de cinquenta. Sabe o que mais queria. Um “faixa
branca”. Como aquele Mercury 49 bordô que tivemos um dia. O bordô passou a ser
uma das cores da minha vida. O cheiro de ferrugem que me invadia as narinas
quando eu me sentava ao volante brincando de papai no trânsito de Sampéia (naquela
era dos nossos pequenos dinossauros Sampéia ainda não existia mas fica melhor
assim nebuloso, mixturado com xis como um daqueles mixtos-quentes que você
parava na padaria pra comprar pra mim e pra mana. O mais vívido ainda hoje é
aquela ao lado da igreja de São João Clímaco. Até hoje fico me perguntando que
porra fomos fazer em São João Clímaco aquela noite, aquela noite meio
assustadora. Houve alguma que não fosse? eis o que gostaria que você me
perguntasse)
Ainda não decidi a marca do automóvel que
pretendo alugar. Se você fosse vivo, qual me recomendaria? Não, grana não é
problema, você sabe. Não, não compartilho dessa tua filosofia da penúria. Gosto de
luxo, gosto de conforto. Amanhã é meu domingo especial e posso torrar à
vontade. Até já saquei no banco. Vou levar tudo em dinheiro. Não quero perder
tempo nem me estressar com cartões, consultas de crédito, essa merda toda.
Popular mil cilindradas? Nem pensar. Estou
hesitante entre um Toyota Camry, um Land Rover Pajero, um Audi V6. Se na hora
me der na telha, sou capaz de escolher um truck Dodge Dakota 5.2 V8! Já pensou?
Vrum! Vrum! Vrum! Vrum! Vrum! Vrum! Já pensou
você do meu lado? Vrum! Vrum! Vrum! Calma, Nenê! (Quem é que me chamava de Nenê
mesmo?) Olha a placa. Olha o guarda. Olha, olha, olha.
Fiquemos com Dakotão vê-oitão então ão ão.
Vrum!
Olha que sou capaz de pedir um blindado!
Tudo carregado na caçamba da fera, tudo
pronto. Falta só uma coisa. Que é que falta? Falta pegar a Anchieta. Imigrantes
nem sonhar. Não gosto da Imigrantes. Será que é porque a Imigrantes destruiu
um dos meus sonhos infantis?
Aperta o cinto aí, lá vamos nós, Vrum!
Tendo chegado ao Guarujá, meu domingo vai
ser assim.
Vou na marina alugar um barco. A marina,
já escolhi. Nem mambembe, nem chique. Só o necessário pra descolar uma lancha básica.
Quer dizer, nem tanto. Espero que tenha
pelo menos micro-ondas. Afinal onde vou esquentar meu frango com muita farofa?
Se não tiver, paciência. Vai frio mesmo. Quantas
noites, de domingo, de sábado, do cacete a quatro, já comi frango e outras
tranqueiras geladas, não é mesmo? Não, não estou culpando ninguém. Não sou tão
porqueirinha quanto pareço. Se o sujeito é incapaz de esquentar a própria
comida, a culpa é de quem? Do governo? como querem os zé-ninguéns mimados pela
esquerda de hoje, que os trata qual retardados?
Por via das dúvidas, optei por uma Phantom
360. Apenas três e mil e seiscentos reais a diária. Tá karo nada! São duas
bestas Mercury 350 HP cada uma. Acompanha um marinheiro habilitado, que
dispensei, claro. Você sabe como fico na presença de estranhos. Estranho é
estranho é estranho. (Não vou levar meu bloco de anotações mas não significa
que vou deixar a sozinha poesia em casa.) A bicha lembra uma orca. Tem
banheiro, quarto com cama de casal, sofá, bote inflável, solarium de proa, tevê
e... tchan tchan tchan churrasqueira! Puta merda, quem sabe na hora eu resolva
levar uma picanha, uns corações de frango, uns quilinhos daquela linguiça que
traçávamos nas tardes de domingo.
Ilhabela, aqui vamos nós!
Aqui íamos.
Você sabe, sou tão inconstante.
Sou de lua.
Mudo de ideia como quem troca de canal
numa tarde de domingo.
Sou mais o alto Mar.
Meu destino está no alto Mar.
Minha vida está no alto Mar.
Hoje, nesta tarde domingo, prometi a mim
mesmo, vou escrever sobre o alto Mar.
Eis-me aqui pagando minha promessa a mim
mesmo.
As únicas promessas que sempre paguei
foram as que fiz a mim mesmo.
Mesmo sem fazê-las, mesmo sem pagá-las.
Alto Mar, aqui estamos, eu e você.
Você e eu.
Não, não trouxe meu bloco de papel nem
meu jogo de canetas Bic. Não, não me arrependi. Sim, o maior poema de toda
minha vida atravessa meus neurônios neste instante.
Sabe que é que vou fazer? Nada. Vou ficar
aqui olhando tuas imensas, tuas silenciosas ondas subir e descer
Não vou dar a mínima
Vou fingir que não é comigo.