Sô não costuma — nem gosta — de levar as coisas à sorrelfa. Não deu a mínima pela aproximação
de Sílvia. Sílvia, au contraire, provavelmente perdeu o sono uma semana.
Estou ciente de
que ando falando meio enviesado de Sílvia nos últimos tempos. Mas não é porque
senti algum abatimento no meu amor por ela. Au contraire, parece que a amo cada
vez mais. O que vem acontecendo é que me deu vontade de botar certas coisas em pratos
e copos limpos. E ainda estou meio embasbacado com a tal aproximação (mas que
palavra mais besta, esta). O único motivo que vejo pra ela andar me espreitando
(outra) é que ainda gosta de mim. Só pode ser. O texto que escrevi pra ela há
anos, Barraco metafísico,
parece que finalmente tocou no nervo. Não, tô brincando. Teria acusado na
época, não é mulher de deixar passar batido o que lhe seja importante. Mas
sinto o nó que trago no estômago de nascença se aliviar um tico na tensão do
aço. No fundo sempre soube que, apesar da minha inaptidão pros julgamentos
pragmáticos, não podia ter me apaixonado pela mulher mais errada que pudesse
haver na cidade. Sinto que ela começou a enxergar a luz. Ninguém se une
impunemente a um bancário. Mulher nenhuma troca à toa um poeta por um sujeito
que dedica a existência a conferir saldos e fazer débitos e efetuar créditos e
somar cheques e deduzir gastos de clientes em restaurantes e barzinhos.
Como se não
fosse com ele, entende?
Bancário fosse,
eu provavelmente ligaria pra essa e aquela belezura cliente do banco pra
perguntar se ela tinha curtido a comida e o que tinha bebido e onde, e com
quem, tinha acabado a noite. Que é que posso fazer se são essas as preocupações
que habitam este meu cabeção de jaca povoada de sementes apodrecidas?
Na sequência — como gostam de dizer os comentaristas de futebol —, pediria pra ela me levar
junto quando resolvesse revisitar a pocilguinha. Quer dizer, junto, não. Levar
simplesmente a mim. Como sempre digo, mais de dois é show do woodstock.
Você obviamente
não vai acreditar se eu disser que sou capaz de viajar semanas nesse tipo de
"hipótese". Pois sou. Nesse e em qualquer outro tipo de fantasia que
me salve deste túmulo em que fui gerado e onde cresci e onde vivo até hoje
enterrado vivo, boca e olhos e ouvidos entupidos de areia, forçado a gerar um
mundinho particular só pra mim, sucedâneo daquele que não tive. (Não se
assuste, são só pensamentos típicos da cabeça típica dum poeta típico; Kafka
criava imagens infinitamente mais apavorantes, podes crer. E belas.)
Sô tá
menstruada e sou capaz de passar a noite toda cheirando a buceta dela. A concupiscência
atinge níveis muito mais estentóreos que qualquer ereção precária e dura de suster. O perfume duma buceta menstruada pode te levar num
giro nos cornos do cometa Halley pelo universo e retornar de manhãzinha prum
cafezinho saboroso feito pela própria ao pé do fogão, assistindo os bichinhos
voadores a roubar o néctar das petalazinhas da dama-da-noite do quintal como se
foram minúsculas bucetinhas repetidoras do dom da vida.
Snifffffffffffffffffffffffffffff, seu bichinho, deix'eu cheirar também, que
dádiva dos céus este meu sentido do olfato.
O cheiro de Sô
me faz me sentir macho.
(Você já
reparou, sobretudo na tevê, esses caras que dizem "me faz sentir",
omitindo o segundo pronome só porque acham que é feio repetir palavras? É essa
gente que determina o rumo do vernáculo, puta que pariu.)
O cheiro de Sô
me faz me sentir macho.
Acorda,
levanta, apanha a toalha, peço pra só tomar banho na volta, assim o perfurminho
sacro vai fermentando e vira suprassumo quando ela voltar da escola.
Volta da escola
c'um livro na mochila.
Quero que você
leia. É pro nosso bem.
Nunca tive medo
de leitura, desde que legível. Posso traçar qualquer coisa, de gibi a livro de
receita de brigadeiro a manual de aspirador a tratado maoísta a paulo-coelho a
folheto de propaganda de prédio de "luxo" de um dormitório com suíte,
terraço gurmê e dependências de empregada com vinte e dois metros quadrados (esses
são uma delícia).
Fico meio
inquieto.
Pro nosso bem,
môr? (Vejo a carona bolachuda de Herr Doktor Paschoalino querendo me atazanar
por causa do circunflexo deslocado. Esse Paschoalino é um belo dum filho da
puta.)
Pro nosso bem,
morzinho. Andei estudando, sabe?
Sei.
No duro. Hoje
estou calminha, pode usar e abusar desse seu sarcasmo bobo. Tô aprendendo muito
com este livro aqui.
Está segurando
o livro contra o peito, ocultando a capa. Minha inquietação sobe. Daqui a pouco
é capaz de virar inquietude.
Andou estudando
o que, benzinho?
Essas suas
piadinhas que você vive fazendo de que é existencialista coisa e tal, fui
pesquisar. A Ágata até me ajudou.
Fico feliz
vendo sua dedicação à pesquisa. Inda mais que o pesquisado sou.
Descobri uma
coisa.
A inquietude
vai virando apreensão.
Que foi que
descobriu?
Que não é
piada.
O que não é
piada?
Esse teu
existencialismo que vive falando.
Solto o ar
retido nos pulmões.
Viu como sou
sincero com você, môr? Nasci e hei de morrer existencialista. Que bom que
começou a me compreender. Posso ver agora?
Promete que vai
ler?
Claro, morzin.
Leio hoje mesmo.
Afasta o livro
do peito e mostra a capa.
Vejo um chinês.
Um chinês usando um penhoar oriental e óculos ocidentais. Um sujeito risonho e
efervescente a irradiar uma alegria extraterrena a quilômetros de distância.
Aproximo o
rosto, leio o título. A arte da felicidade. Mais embaixo, Um manual para a
vida.
Autor, em
letras maiúsculas, SUA SANTIDADE O DALAI LAMA.
Congelo o
sorrisinho que venho tentando balançar nos lábios desde que Sô chegou.
Que legal.
Pego o livro.
Viro.
Leio a
contracapa.
Acredito que o
objetivo da nossa vida seja a busca da felicidade. Isso está claro. Todos buscamos
algo melhor na vida. Portanto acho que a motivação da nossa vida é a
felicidade.
Espio o número
da última página, 361.
Trezentas e
sessenta e uma páginas nessa toada?
Um desânimo
descomunal me deixa as pernas bambas.
Contra minha
vontade, meus olhos releem o parágrafo. Acredito que o objetivo...
Sou um
irracionalista, vocês sabem. Um irracionalista satisfeito. (Com o próprio,
ressalve-se.) Não acredito nem nunca acreditei na lógica quando se trata do
pensamento, muito menos naqueles que se autoproclamam lógicos. Esses são os
mais nocivos, até perigosos.
Mas a falta de
lógica do primeiro parágrafo do seu Dalai dispara luzinhas e apitos dentro da
minha cabeça.
Não, cara, o
objetivo da vida não é a busca da felicidade. Dizer que a vida tem um objetivo
é o mesmo que acreditar que a barata nasceu pra viver nas frestas e um autista
esquizofrênico surdo e mudo veio ao mundo para servir de cobaia para um
laboratório da Califórnia. A menos que você consiga me provar que um autista
esquizofrênico surdo e mudo possa meramente almejar a sonhar com seu encontro
com algo que muito remotamente lembre felicidade.
Felicidade é um
conceito moderno, i.e., foi forjado depois da Revolução Francesa.
Historicamente, é uma titica na perspectiva do pensamento humano. Desde que
começou a aprender a pensar e a dominar a palavra e a escrita e a linguagem, a
humanidade passou noventa e nove por cento de sua existência absolutamente
alheia ao conceito dessa felicidade que hoje todo mundo e a lotação duma van
que faz a linha São Judas Tadeu-Capela do Socorro enche a boca pra enaltecer e
desejar e se derreter. Essa "felicidade" que todos "buscam"
(qual o mapa do tesouro) é uma invenção da canalha de publicitários que nas
últimas décadas vêm regendo nossas vidinhas de pulgas consumistas. Essa é a
"busca". Você nunca encontra a desgraçada efetivamente. Os biltres te
obrigam a comprar, comprar e comprar permanente e eternamente na expectativa de
achar um dia. Achar o quê? A felicidade. O sabonete mais escorregadio que os
ultracientistas da gessy-lever já inventaram.
Promete que lê,
morzinho?
A vozinha
chorosa de Sô me arranca do devaneio. Puta merda, como queria poder registrar
em papel todas as loucuras que cruzam meu cérebro num segundo.
Que é que não
faço pela minha fadinha que chega em casa com seu uniformezinho escolar
trazendo um livro de presente pro camaradinha que dedica a vida a garantir a
felicidade dos pombinhos? Que tal passar a tarde na banheira, hã?
Não sei se
vocês sabem, muitos livros — a maioria, talvez — são podados por seus autores
depois de prontos. (Exceto os que acreditam em volume como Proust,
naturalmente.)
Estou lendo O
jogador, de Dostô. Quer dizer, tentando. O tradutor cometeu um massacre. Em
Paris é uma festa, Hemingway lá pelas tantas comenta — depois de tirar uma do pintinho pititico de Fitzgerald — que Dostô não sabe
escrever. O comentário partindo de quem parte não é desprezível, bien sûr.
Pelo que me lembre, Hem não lia russo, não leu o Dostô original. Dá pra saber
que um sujeito escreve mal só pela tradução? Se o tradutor for bom, sim.
Essa tradução
que tento ler veio do inglês e o pobre vertedor não manja lhufas de inglês e
menos ainda de português, amontoando pronomes oblíquos página após página como
se sua missão fosse nos torturar. Arrumei uma versão em inglês na rede e
reiniciei a leitura.
Mas não era pra
falar d'O jogador agora. Eu e minha ansiedade malsã, escapou. Lembrete pra mim
mesmo: falar do jogador quando chegar a hora.
Não consigo
segurar entre o indicador e o polegar um palito de fósforo mas sou capaz de
agarrar a Serra do Mar com os braços e erguê-la acima dos meus ombros.
Estou aqui no
googlemaps tentando ver aquele morro na ponta da Praia Grande, perto do Forte,
que atravessávamos para pegar marisco e onde papai me mostrou que ficava a
válvula da minha vida.
Será que ainda
tá lá, pai?
Queria voltar
lá um dia, checar in loco, quem sabe achava minha "felicidade"? Nunca
passou pelos miolos do seu Dalai que a felicidade de alguém podia estar
esquecida no alto dum morro entre a praia entulhada de turistas e uma longa
fileira de rochedos contra os quais os vagalhões do Atlântico vêm se acachapar
talvez com a inexplícita missão de se exibir ao olhar atônito dum menino sensível
demais pra acatar e aceitar os imensuráveis titãs que surgem de dentro das
coisas quando você menos espera?
Não enxergo o
que está escrito a meio metro dos meus olhos mas fecho as pálpebras e de
repente posso ver o salão e a dança dos garçons e as mesas bem-espaçadas e as
garrafas de champanhe e vinho no gelo.
Feódor
Mikhailovich Dostoiévski, quando é que você decidia finalmente parar e, se
munindo de paciência qual um soldado ucraniano a postos na Crimeia a checar
pela última vez o pente de seu fuzil de fabricação russa enquanto espera a
baioneta dos novos bárbaros do czar Putin a se lhes espetar na garganta,
iniciava o ofício da anticolheita?
Os seres desta
raça a que lamentavelmente pertenço têm essa mania de se expressar através de
indiretas. Por que será, porco dio?
Por que
simplesmente não dizem o que pensam, por que não dizem o que sentem e assunto
liquidado?
Deve ser por
isso que o mark-zuckerberg da Antiguidade criou o oráculo de Delfos. Dez mil
anos e não aprendemos porra nenhuma neste planeta de merda.
O fim vem vindo
aí e o merecemo-lo sem vaselina.