Lima, Peru. Última
cidade na Terra que pensava seria palco do fim dos meus dias.
Ruas estreitas,
curtas, sujas e miseráveis como no Brasil mas Lima.
No outro
quarteirão vejo uma pizzaria igual a de qualquer outra cidade – planejada,
erguida e desenvolvida para produzir pizzas dos mais variados sabores
as mais
curiosas cores,
capazes de
acompanhar
as mais agudas
dores
os mais malucos
amores,
troféu que os
seres modernos
se permitem
pela vitória frente
à batalha
perdida de cada dia
Diante da
pizzaria faz eterno plantão um motoboy, estranho ser deste meu novo mundo,
boneco automático sempre disposto a percorrer incansável complicados circuitos
pelas tristes ruas desta cidade entre o Lurín e o Rímac, nas noites de sábado
entrecruzando-se com centenas de outros motoboys que juntos entrelaçam complexa
e barulhenta e extravagante trama de emaranhados circuitos. Por quê? me
pergunto, tamanha comoção no universo simplesmente para entregar pizzas? É
porque, me respondo, esse motoboy não tem alma. Sim. Não tem alma e todas as
noites – sobretudo nas de sábado – reinicia seu infindável ciclo e se põe a
buscá-la pelas ruas de Lima, as mais secas do mundo.
Estou, neste
exato instante, diante da minha nova casa, olhando o motoboy em frente à pizzaria
próxima à esquina. Não abandona a motocicleta sequer por um segundo – jamais o
vi em outra posição ou em outra condição; sempre no mesmo ponto, braços
cruzados, rosto oculto por um capacete negro de viseira fumê, os dois pés plantados
no chão da calçada enquanto o próximo pedido de pizza não vem.
Parece estar
pagando um pecado, a expiar um castigo impenitenciável. Faz parte da
motocicleta como se fossem uma só peça indissolúvel. Provavelmente dorme
sentado na máquina, no escuro de sua garagem. Sei, e ele também, que se
abandoná-la por um instante pode a perder, perdendo junto a única chance que
tem de buscar sua alma. Não ouso tentar imaginar como faz para defecar e
urinar. Talvez use penico.
Tenho certeza
de que me vê observando-o e disfarço o olhar. Talvez fique intrigado com minha
insistência em estudá-lo. Se estivéssemos no Brasil certamente viria até mim, me
interpelaria, que é que olha tanto? Os brasileiros se assoberbam muito
facilmente. Mas no Peru as coisas – e as pessoas – parecem diferentes. Todas as
noites me posto diante de casa e fico a estudar o motoboy, mas ele jamais toma
conhecimento de mim. De repente se move, parece estremecer, sacode o corpo,
ruma para a máquina que é o centro de sua vida, monta, desfere um coice no
pedal da partida, o borbulhante ronco do motor permeado de estampidos violando
o silêncio da noite e então sai em disparada para nova missão de entrega duma
pizza de gorgonzola com uma garrafa tamanho-família de guaraná ou sabe-se lá
qual é a bebida preferida dos peruanos.
Passa por mim e,
como sempre, não vira a cabeça em minha direção. Mas deve saber que o observo
todas as noites, digo a mim mesmo num cochicho sibilante. Seria impossível não
me perceber.
Desaparece no
fim da rua e minha alma se espreguiça, solta e livre como nunca a vi. Não fique
tão solta e livre assim, tento terminar o pensamento, mas já é tarde. De
repente sinto uma dor aguda no joelho, uma dor mais forte do que a habitual, e
não consigo me defender apelando aos truques mentais que normalmente uso para
ignorar meus padecimentos físicos.
Cuidadosamente,
tento apalpar o joelho, fazendo movimentos circulares com as pontas dos dedos,
me acercando cauteloso desse que é apenas um dos incontáveis pontos dolorosos que
fazem parte de mim desde que existo.
Está inchado. Massageio
a região por vários minutos, até que o tormento vai ficando tolerável aos
poucos.
Uma luz
acinzentada começa a tomar conta do dia, é uma situação em que me sinto bem.
Esta semana resolvi que vou perder a barriga. Chega dessa vidinha sedentária,
basta dessa modorra em que me arrasto pelas vizinhanças de Teresópolis, chega
dessa mesmice em que me perco pelos desertos da Austrália, basta da insossa
geografia que não serve mais para me orientar na Terra.
Não adianta, a covardia
me tolhe os pensamentos e daí minha ação, e esta gaiola em que me tranco dia após
dia é meu paraíso. Sou um tolo barrigudo cheio de segredos e dúvidas que forram
o vazio da minha alma feito luzidios ladrilhos dum volátil mosaico português.
Quando tomo banho lavo sofregamente cada canto do corpo como se fosse meu maior
objetivo. Empunho o anatômico sabonete formulado para espantar as atrozes sujeiras
de mim e se coadunar à minha grotesca anatomia e passo pelo corpo como se fosse
um caco de vidro.
Me olho no
espelho, vejo um cabeçudo barrigudo a se equilibrar em escassa harmonia.
Apanho o frasco
de talco, arranco a tampa, despejo todo o conteúdo sobre a cabeça.
Um barrigudo
cabeçudo se olha no espelho.
Um homem
perdido coberto de pó branco.
Que se olha no
espelho.
Fala.
Levo um susto,
que me tira o fôlego.
A voz que
escuto não é minha.
Falo de novo.
Não, não é minha.
Fui invadido. Despejado.
Há alguém aqui dentro
falando por mim.
Há algo dentro
de mim.
Algo repelente
dentro de mim.
Minha boca é
ocupada por um gosto estranho.
Não quero gosto
estranho nenhum na boca.
Este gosto não
é meu – o homem grita com sua voz que não é minha.
Ai que preguiça,
a voz diz.
A dor no joelho
dá uma última aguilhoada e passa… passa…
Escuto um motor
ao longe. Uma moto dobra a esquina.
O motoqueiro
freia, produzindo um guincho dos pneus, e para exatamente diante de mim.
Gira o pescoço
pro meu lado. Tento analisar sua expressão mas o rosto está coberto duma camada
branca.
Volta o rosto para
frente, acelera e parte.