Antigamente brasileiro da gema só
dizia o que pensava brincando. A sério, nunca.
Hoje parece que temos uma nova
modalidade de brasileiros “francos mas indiretos”: os que só dizem o que pensam
através da poesia. Se alheia, melhor. O risco de comprometimento é mínimo.
Quando o brasileiro diz o que pensa
brincando, os outros veem que está fingindo. Quando diz a sério, têm certeza de que está brincando. Em
ambas as hipóteses praticamente não há riscos.
Para os estrangeiros que tentam nos
entender é um enigma e então os forasteiros fazem aquela cara de interrogação.
Aí quem fica espantado somos nós. Mas por que cargas d’água esses gringos não
nos entendem? Somos tão simples. Tão diretos e francos! Eles é que complicam tudo com aquela mania de dizer o que
pensam.
Brasileiros não toleram franqueza.
Os brasileiros são campeões dos
assassinatos. O país onde vivem é famoso pela guerra “surda” que come solta
ceifando vidas e ninguém assume. Cinquenta mil, cento e oito patrícios
pereceram em latrocínios, execuções e desavenças no annus mirabilis de 2012. Nas ruas e estradas, quarenta e três mil
patrícios esticaram a canela após atropelamentos e acidentes. Entre homicídios
e trânsito, quase cem mil pessoas são abatidas no matadouro. Como dizia aquela
musiquinha da década de sessenta, é uma terra abençoada por deus.
Alguém liga? São estatísticas, cara.
Quem gosta de números?
Só falam quando uma das baixas é da
família ou do círculo de conhecidos. Deixam o trabalho sujo para os datenas
escrotos que vicejam e chafurdam no sangue ainda não coagulado no asfalto. A
lamúria mais frequente de quem perde um parente é “Vai virar mais uma estatística”. Antes, tudo bem, estava longe. De
repente aquele número maldito passa a fazer parte da vida do distinto, ele
perde o chão. O brasileiro é o rei do rodeio e não estou falando daqueles
torneios primitivos em que cowboys torturam touros e por essa mesma razão vivem
rodeados de cowgirls. A guerra é mascarada, o roubo é mascarado, o extermínio é
mascarado, o racismo é mascarado. Temos a polícia que mais executa suspeitos no
mundo mas o Congresso se recusa a discutir a questão de cara limpa e a botar a
pena de morte em votação. Os parlamentares se tratam de vossa-excelência na
tribuna enquanto mantêm quadrilhas de assalto ao Tesouro pelas nossas costas e
a ousadia do eleitor se resume a postagens indignadas em fóruns digitais SOB A
SEGURANÇA DO ANONIMATO. (Bando de pixotes que querem mudar o mundo mas não se
atrevem sequer a mostrar a cara.)
Não é só nas instituições que o
brasileiro se mostra pusilânime e covarde, naturalmente. O mesmo sujeito que
reclama dos políticos da boca pra fora costuma atirar embalagens pela janela do
carrão do ano ou até na frente dum exército de jornalistas, tal como fez outro
dia o ínclito prefeito do Rio, não se digna a recolher o cocô que seu totó de
raça, pelo qual pagou cinco pilas, faz na calçada, estaciona em fila tripla,
ameaça atropelar pedestres na faixa com seu possante importado que bebe um
litro de gasosa por quilômetro, passa no vermelho, dirige bêbado, suborna o
guarda. No fim de semana vai ao cinema para se mostrar sensível aos vizinhos, à
namorada, ao namorado e encerra a noitada num cantinho da hora consumindo
parcimoniosamente os quitutes sofisticados dos que sabem acompanhar a moda e
poupar os recursos planetários. Grande parte é funcionário público, vive
encostado de alguma forma no governo, se inscreveu numa batelada de concursos
federais, estaduais e municipais e está estudando há cinco anos para descolar
uma boquinha às custas dos outros pagadores de impostos.
Se destituído, o cidadão dedica a
vida a se inscrever nas diversas “carreiras profissionais” que atendem pelo
nome de “programas sociais”, o novo sinônimo de curral eleitoral. Na próxima
eleição ele vai dar seu voto ao larápio que lhe prometer mais mamatas. Há anos
vem ganhando de mão beijada remédio, consulta médica, hospital, creche, escola,
livros, ensino técnico, leite, cesta de alimentos. Só que as esmolas nem sempre
se concretizam como planejado. Então o destituído fica furioso e reclama pros
datenas que os políticos são uns safados e só querem saber dele um mês antes da
eleição. Então, quando chega a tardezinha, pega o saco de lixo, sai pisando no
barro que cobre a rua e ao chegar na esquina dá sua contribuição ao monturo que
vem se acumulando há meses ali pertinho de seu barraco e que gera moscas,
baratas e ratos e, claro, o mosquito do dengue, que pica ele, pica sua mulher,
pica seus filhos e então fica furioso e faz aquelas caretas de injustiçado para
as câmaras dos datenas e então ambos, ele e o datena, amaldiçoam os políticos e
poder público e se perguntam até quando vamos tolerar essa pouca-vergonha. (E não
esqueçamos que o sr. Datena é amigão do peito do sr. da Silva, pois é.)
Que gostoso viajar na irracionalidade
brasílica. Mas não posso me deixar arrastar por esse discursinho de revoltado,
essa indigência é o que testemunho o tempo todo no meu dia-a-dia e me dá
engulhos. Há décadas decidi não desperdiçar minhas parcas energias com o que já
na infância determinei não merecia meus pensamentos.
O que comecei falando foi a confusão
entre entretenimento e poesia.
Me assombra que precise fazer este
tipo de ressalva.
Será que os que se proclamam poetas
ou consumidores de poesia ou diletantes não sabem?
As pessoas a que me dirijo são
adultas, supostamente maduras, provavelmente leem poesia há anos, talvez há
décadas, que decepção ver que ainda não sabem o que é poesia. Ou literatura.
Sei eu o que é poesia?
Muito raramente, sim. Em geral, não
logro senão uma patética especulação. Não apenas na minha prosa mas também nas
próprias vezes em que imagino estar sendo poeta.
Como fazemos tantos de nós em tantas
ocasiões sobre tantos assuntos que nos tantalizam, não sei muito bem o que é.
Sei mais o que não é.
Posso asseverar que, na minha
concepção, não é o que fazem os usuários de redes sociais que despejam em suas
páginas versos de Mario Quintana e Clarice Lispector e Fernando Pessoa como se
fossem receitas das especiarias que fazem o deleite dos leitores da Vejinha.