Não gosto de chorar de manhã. O choro
matinal espanta os eflúvios oníricos ainda frescos no córtex. A matéria dos
meus sonhos, e pesadelos, é o pouco que resta de mim. Sou um sujeito que vive
num mundo imaginário e não posso ir jogando fora sem mais nem menos o que se
passa em minha cabeça enquanto durmo. Aprendi, com o tempo, a fazer da manhã um
momento de celebração. Só não parto sumariamente para o ritual porque também
aprendi a ter nojo de rituais. E de ritualistas. Não é um refresco, obviamente.
Requer tutano. Tutano não me falta. Requer gana de sublimação. Gana de sublimação
não me falta. Que é que me falta, afinal? Ainda não sei. Talvez pudesse começar
respondendo a esta pergunta: por que é que tudo na vida tem de ser uma lição se
somos tão maus alunos?
Não gosto de chorar de tarde. Pensando bem,
pensando mal, nunca fui muito com a cara da tarde. Não vou enumerar as razões,
pois cairia no esquemático e você sabe que odeio esquemas. Dos períodos do dia,
é exatamente a tarde a que melhor os representa. Tarde evoca modorra, mas não
tenho interesse algum nesse tipo de evocação, pois se trata de evocação comum à
espécie inteira e tenho asco de qualquer coisa que seja comum à espécie inteira.
E modorra é uma das palavras mais
estranhas da língua. Desde muito cedo impliquei com essa palavra soturna,
gutural, de tons fechados e sombrios, que evoca em mim a imagem dum
bicho-preguiça e bichos-preguiça estão com os dias contados, pequenos patetas
inermes, destituídos de autodefesas, que se deixam caçar para ser engaiolados e
exportados para johnnies e marys e franz e pierres na América, na Europa, na Ásia,
onde são exibidos para parentes e vizinhos como troféus do domínio do homem sobre
os elementos. Muitos se deixam atropelar pelas estradas ao lado de tamanduás,
gambás e outros bichos para quem o mundo ficou pequeno demais. Não gosto de
chorar de tarde porque chorar de tarde me lembra de que me identifico além do
saudável com o bicho-preguiça. Tal como o bicho-preguiça, sou peludo,
sonolento, vagaroso e sonhador. Tudo me faz parar e refletir e quando me vejo
em perigo me limito a fechar os olhos esperando que o perigo logo passe e eu
logo retorne à minha modorra habitual, a esse estado que é o meu e execro e que
provavelmente acabará me envolvendo também num atropelamento.
Não gosto de chorar de noite. Não gosto
de esquemas, certo? Não me lembro de já ter chorado de noite. Até aí, deve ter
tanta, tanta coisa de que não me lembro. Será que acabamos por esquecer a
maioria das coisas que nos acontecem na vida? É bem provável que sim. Claro. A
cada dia acontecem a cada um de nós coisas incontáveis. Qualquer dia desses um
desses gênios da computação invente um programinha que conte o incontável. Você
baixa o aplicativo e começa a contar. Contar o quê? Não importa. Desde que
distraia essa gente toda que a cada noite que passa tem menos o que fazer na
vida. Não sei se tal dia – o dia da invenção da geringonça contante – estará entre
os mais de vinte e mil dias que vivi até hoje. E, brrrr, as mais de vinte e uma
mil noites. Que enormidade. Que assombro. Que foi que fiz nessas mais de vinte
e um mil noites? Onde estava? Pensando em quê? Pensando em quem? Em geral penso
mais em pessoas que em coisas. Pelo menos nisso devo guardar alguma semelhança
com meus semelhantes. Semelhança com quem deploro. Quando penso, penso mais em
fulano, beltrano e sicrana do que nas coisas que me interessam. Que coisas me
interessam? Vejamos. Em primeiro lugar está minha escrita. É em que mais penso
quando não estou pensando em beltrana, sicrano e fulana. Ainda mais porque minha
escrita me intriga. Ainda mais porque minha escrita é intrigante. Não tanto
quanto a de Thomas Bernhard, o rei da duplicação e da auto-imitação. Mais
comedida, porém. Bernhard era um exagerado. Se o lessem, os semiletrados que
acham que abuso das repetições ficariam espantados. Mas não correm tal risco,
naturalmente. Ninguém lê Bernhard. Muito menos semiletrados. Semiletrados não
leem coisa alguma. Se deixaram viciar pela imagem. Acham simplesmente natural
se amarrar em cinema e tevê. Fazem parte dessa nova raça que vai derivando da espécie
humana em que o olhar vai se hipertrofiando e os demais sentidos, se
atrofiando. Seus descendentes terão globos oculares desmedidos e cerebrozinhos
chinfrins, refratários ao pensamento. E longos dedões indicadores próprios para
clicar o Curtir dos faces da vida. É uma gente asquerosa, destituída da
capacidade de deduzir e determinar o que é melhor tanto para si mesma quanto
para seus iguais. Abrem as pernas e se abandonam ao estupro. Se entregam a tudo
que é porcaria que o sistemão lhes esfregue na fuça, se entregam de bel prazer,
se entregam sem pestanejar, se entregam sem um “a” crítico, se entregam sem nunca
se perguntar se o que recebem lhes fará bem ou mal. São meros consumidores e agradecem aos céus por ser meros consumidores. Não dão a mínima que seus corações
e mentes sejam moldados pela Tríplice Aliança (TA), a Santíssima Trindade (ST),
o Trio Parada Dura (TPD), o TASTTPD: Mídia, Publicitários e Governo. Publicitários,
Mídia e Governo. Governo, Publicitários e Mídia. Se é de graça, que se foda. Em
suas cabecinhas adestradas pelo TASTTPD, imaginam que o preço seja tão módico
quanto um jogo de sofá nas Casas Bahia. Precinho de banana que pagarão de bom grado
em suaves prestações até o último dia de suas vidinhas de inseto. Talvez já
tenham ouvido falar que podem estar sendo usados, hipnotizados, roubados de seu
senso crítico, com sua mentalidade reduzida à pusilanimidade dum rebanho de
carneiros, mas sequer dão de ombros. As delícias da tecnologia compensam e
recompensam. Seria inimaginável viver sem o poder e o conforto que o mundo moderno
nos entrega numa bandeja de prata. Sentem calafrios quando pensam que até ontem
não existia celular. Como é que aqueles coitados viviam? Quem está preocupado
com senso crítico diante dos inesgotáveis deleites desta era milagrosa?
Não gosto de chorar de noite. Não me
lembro de já ter chorado de noite. A noite suscita em mim reações tão
conflitantes, pensamentos tão espinhosos, sentimentos tão agudos. Época houve
em minha vida que fiquei traumatizado. Chegava a tardezinha e ia descendo o
escuro e me dava aquele nó de angústia no estômago, na garganta, no peito. É falta
de choro, tentava me autoconsolar. E debochava do meu próprio diagnóstico. Se há
uma coisa que não falta em nós humanos é o choro. Outra, o padecimento. Outra ainda,
a dor, física ou emocional.
Não posso desperdiçar a oportunidade para
lembrar aos meus quase quatro leitores que a humanidade chora não é de hoje.
Em 1931, arqueólogos encontraram o registro
mais antigo do choro em tábuas cananeias feitas de argila, datadas do século 14
antes de Cristo e originadas numa aldeia da Síria chamada Ugarit. As tábuas contêm
um poema narrativo sobre a morte de Baal, deus da terra, e sua irmã, Anat, deusa
virgem, que chora ao receber a notícia da morte do irmão. Segundo o poema, a lamuriosa
Anat se saciava com o sofrimento, sorvendo as próprias lágrimas como se fora
vinho.
A Bíblia hebraica relata que na antiga
cidade de Canaã se realizava um ritual de riso e choro em que toda a tribo se mandava
para o deserto e se punha a gemer e a chorar coletivamente, no que passavam
vários dias até atingir a histeria para em seguida cair num estado de riso
hilariante. Findo o ritual, retomavam suas atividades cotidianas. Na mitologia
egípcia, a deusa Isis se debulha em lágrimas ao encontrar seu irmão Osíris morto
e suas lágrimas acabam por trazer o morto de volta à vida.
Na Ilíada, Ulisses chora de prazer quando
o bardo Demôdoco lhe conta a história do cavalo de Tróia, apesar da dor que
sente ao se lembrar dos camaradas perdidos. Menelau diz a Ulisses que quando
pensa nos homens mortos na guerra, “a dor
é tudo que me resta desses companheiros. Lágrimas quentes escorrem por meu
rosto e me deleito, parando antes que o excesso me faça tremer.”
E n'As
troianas, Eurípides não deixa barato:
Que boas
são as lágrimas, que doces os lamentos,
Prefiro
cantar lamentos a comer ou beber.
Eurípides, como se vê, era um exagerado.