Continuação de Vila nova, digo, vida nova na vila V
Aproveitando
uma visitinha inesperada que recebi hoje cedinho de alguém que não trabalha nas
manhãs de um dos dias da semana (como tem gente folgada por aí, cáspite),
resolvi dar prosseguimento a esta eletrizante série. Como meus quase cinco
leitores sabem (pois é, ganhei mais um durante a copa-e-cozinha), minha vida
virou um inferno no paraíso depois que mudei pra vila. Leiam aí como foi.
A Gi deu uma saidinha (não me pergunte
aonde essas mulheres saem tanto nem por que têm tantos afazeres mais que os
homens; estes se limitam a um: trabalhar; as mulheres precisam tomar conta do
mundo; vide Dilma).
Me pediu pra atender o tel um pouco.
Tudo bem, Gi. Pode ir bater perna tranquila.
Papai aqui etc.
Vai ser moleza, pensei quando Gi me deu
as costas, a canícula comendo em cima da gente, ninguém vai querer pizza
(embora o Osório tenha botado mais lenha no forno do que de costume, segundo me
disse; o Osório é um e-terno otimista).
Ledo Ivo engano.
(Ledo Ivo esticou as calças de tergal azul-lata-de-inseticida
semana passada, poor thing. No momento meu dileto poeta Ferreira Gullar está na
pole position para ocupar a vaga de Ivo na a-bel-ele. O que Gullar quer fazer
naquele antro de caquéticos acho que nem ele sabe, de certo. Com 83,
provavelmente ficou senil. Ninguém resiste à degenerescência biológica. Voltarei
ao assunto oportunamente, hehehe.)
Fico olhando Gi entrar no seu Fusca preto
(dona de pizzaria, sacumé; o fuscão tá mais batido que chantili, as mulheres
nunca vão aprender a dirigir?) (será que é casada? esqueci de perguntar; se
for, tô lascado). Entra com aquela cara de maria-gasolina satisfeita que as
mulhas fazem quando dirigem.
Arranca cantando pneu.
Nisso a desgraça toca.
Sim, o tel. Sei que parece a novela das
nove mas é mais pura verdade.
Por uns instantes penso em não atender —
detesto falar no tel, inda mais com estranhos — detesto estranhos — detesto
todo mundo e seu técnico em telefonia.
“Boa noite!”
(Lá vêm os caras com seus pontos de
exclamação.)
Não podiam falar em tom neutro uma vez na
vida? Abomino afobados.
“Pois não?”
“É da pizzaria?”
Não, é de Auschwitz. Vai um judeu com atum
e aliche hoje, patrão? O que não daria pra ter uma câmara digital divina pra
ver a cara do tonho.
“Sim-senhor.”
“Eu quero uma pizza de atum.”
Por que “eu quero”, caráleo? Diga “quero” e pronto, qualquer energúmeno
subentende que é a primeira pessoa do indicativo, é assim que fazem na França,
na Espanha, em Portugal e no Azarbequistão. Que mania de desperdiçar pronome
pessoal, puta merda.
“Sólido ou ralado, senhor?”
“Quanto é o sólido?”
“O sobrepreço seria de quatro reais em
relação ao ralado.” Capricho no economês. Quem sabe o biltre desista da pizza e
pare de me atazanar o saco. Quem sabe tente o Mac. O hambúrguer deles, feito à
base de minhoca contaminada de arsênico e vitaminada com andresterona, zeranol,
acetato de trembolona e acetato de melengestrol, deve ser mais saudável que a pizza da dupla
Gi-Osório.
“Então eu quero o ralado!”
Hehehehehehe, o diabo dentro de mim se
caga de rir.
“Com bastante cebola, viu?”
A velha piada é inescapável, que é que
posso fazer?
“Mais alguma coisa, senhor?”
“Vocês têm tubaína aí?”
Aqui não, mas na puta-que-te-pariu tem.
“Temos, senhor. Quantas garrafas?”
“Me manda um litro de coca. Bem gelada!”
“E uma tubaína?”
“Sem tubaína. Se vier tubaína, eu devolvo o pedido!”
“Pois não, senhor. Mais alguma coisa?”
“Só isso!”
“Vai pagar como?”
“Débito!”
“Pedido anotado, senhor. Obrigado.”
ISKERECREK! O FDP bate o telefone. (Será
essa a onomatopeia correta?)
Passo o papelzinho pro Osório. Espero que
ele entenda meu garrancho. Sempre tive letra feia. Ou, mais precisamente,
preguiçosa. Letra de vagabundo. Não que seja, naturalmente. É só mais uma representação
da minha má-vontade com o universo. O universo exige demais de mim. A Gi exige
demais de mim. As sirigaitas deste mundo exigem demais de mim. Às vezes me olho
no espelho me perguntando por que raios sou tão disputado pelas mulheres. Será
este meu ar soturno de poeta seresteiro?
Ainda não esqueci o cliente mal-educado,
obviamente. Duvido que algum dia venha a esquecer. Se tem uma coisa que não
perdoo é má-criação. Ainda mais por telefone. (Vis-à-vis ninguém se atreveria,
bien sûr.)
Ah, tivesse uns pontos de LSD, o
safado me pagava. Da pizza da terça à noite cum barril de coca diante da novela
das nove com baldeação em Lucy in the Skies with Diamonds e daí diretamente pro
inferno. O sicofanta ia ver com quantas tangerine trees se faz um kaleidoscope
eye. Se o tresansbunto morasse num apê, ia sair voando que nem a Ana Cristina
César, que pensou que fosse borboleta. (Tô brincando, ela se atirou do apê por
depressão, o que logo haverá de levar este empregado de pizzaria que vos atende.)
(Na década de sessenta Abbie Hoffman
ameaçou despejar ácido no sistema de abastecimento de água de Chicago e botar a
cidade toda de pernas pro ar em protesto contra a guerra do Vietnam. As
“autoridades” garantem que não seria possível, que os laboratórios envolvidos
no ataque não dariam conta de produzir a quantidade suficiente para produzir um
efeito intoxicante mínimo, que o LSD se decomporia sob a ação da luz solar, do
cloro, etc. Pergunta: e se já envenenaram todas as fontes de água do mundo e
não sabemos?)
(Só mais um aparte. Um dia antes de me
mudar pra vila, sacaneei a caixa d’água dum vizinho do meu endereço antigo com
alguns pontos de ácido. Qualquer hora volto lá pra ver o estrago. Tomara que
o desgramado tenha aprendido a não soltar rojão em dia de jogo do Coríntians.)
E assim deverá seguir minha existência de
telefonista de pizzaria até as onze da madruga. Isto é, se nenhum esfomeado
retardatário resolver me azucrinar. Dizem que é comum em muitos restaurantes cozinheiros
ou garçons ou entregadores cuspirem nos pratos antes de os levar à mesa ou
fazer a entrega. Sempre duvidei dessa “máxima”, carinha não teria coragem,
pensava. Agora sei que é plenamente possível. Provavelmente nenhum desgraçado
morreu disso até hoje. Embora sempre haja uma primeira vez. Ih, tô tão
clichezudo tonight, acho que é a canícula. Entre um ponto de LSD ou uma cuspida
no meio do atum, fico em dúvida qual escolher. A vida nos dá tão poucas opções.
(Você na certa concluiria esse período com 3 little dots, não concluiria? Pode
confessar. Te manjo bene.)