Soldadinhos de nuvem

Cara, sonhei com você hoje cedinho minutos antes de acordar.
Seguíamos pela Baraldi rumo ao Instituto. Ao meu lado estava o Dênis, que conheci em outra época da minha vida. Eu, entre vocês dois. Só depois de acordado fui notar que quem servia de divisória entre as duas épocas da minha vida era este sonhador que vos fala.
Seguíamos pela Baraldi rumo ao Instituto mas seguíamos pela Baraldi rumo ao Instituto em nossa pele atual, não na daqueles tempos. Eu, grisalho, você, grisalho. Eu, vestindo não lembro o que, você trajando aquele paletó de advogado que usava aquele dia vinte anos depois quando nos encontramos por acaso na Cásper Líbero, você seguindo rumo ao Fórum de SP, eu, seguindo sem rumo algum, pra variar.
Você sabe como são sonhos, não há nada mais perturbador. Quando acordei, a consciência turvada de fragmentos cognitivos e mnemônicos, fiquei puto comigo mesmo por não ter te abraçado. Caráleo, estávamos tão próximos, bastava estivar o braço. Acho que até cogitei na hora, não lembro se fiz menção. Aí o Dênis falou algo com aquela leveza que ele sempre usava pra falar as coisas e me distraiu e quando me virei de novo, estava de volta a este mundo porco em que vivo.
Ainda tive tempo de dar dois passos. Dois míseros passos. Indeciso se me voltava para você ou para ele. Olhei um e outro. De esguelha. Pude perceber sua costeleta salpicada de fios brancos. No sonho... você sabe como são os sonhos.
Lembra como ríamos das palavras aquela época? Se um de nós dissesse, mesmo por farra, que tínhamos olhado o que quer que fosse “de esguelha”, o outro riria às bandeiras etc e a piada prosseguiria até um de nós cansar das possibilidades.
Eram tantas possibilidades. Onde foram parar todas elas? Você sabe? Acho que não. Desconfio que quando nos separamos – e nunca mais nos vimos desde então – nos separamos porque já não queríamos saber das nossas possibilidades. Será esse o significado de ficar adulto?
Nos conhecemos tão acidentalmente, nos afastamos tão casualmente. Quando nos afastamos, ambos sentíamos “deu”. Cada qual por seus motivos. Tínhamos explorado um ao outro até onde podíamos e seguir em frente ignorando nossos limites podia ser perigoso. Embora, você sabe, nunca dei muita bola pro perigo. Acho que foi aí que a luz vermelha acendeu pro seu lado. Embora sonhador, não custei a perceber que, para você, um amigo que não desse lhufas pruma luz vermelha seria demais da conta. Algum tempo depois pude ver que você precisava seguir os passos do seu pai. Ou melhor, as ordens do seu pai. Comerciante, ele queria um filho c’uma carreira sólida. Então você foi fazer Direito.
Provavelmente seja por isso tudo que no meu sonho logramos nós três dar não mais que dois frugais passos. Em dois segundos pude vislumbrar a gênese e o termo da minha existência.
Por uns meses caminhamos lado a lado pela cidade, trocando confidências e impressões. Gostava das suas impressões. Você gostava das minhas, era patente. Nos surpreendíamos mutuamente. Ouso mesmo dizer que nos apaixonamos. Então já sabia que amigos podem ser apaixonados. Éramos demasiado sensíveis para explicitar sentimento tão delicado. Eu gostava do período em que a tarde começava a ceder lugar à noitinha. Você preferia o crepúsculo em si. Me lembro que fiquei dias absorto a ponderar tão fantástica diferença.
E então nos separamos pra valer. E nos reencontramos muitos anos depois. Um reencontro decepcionante, para ambos. Não víamos a hora de nos afastar o máximo possível quando nos despedimos. Cada um deu as costas para o outro num adeus definitivo. Para mim, uma montanha de lembranças fantasiosas da adolescência ruiu num instante silenciosamente.


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