Você diria que é mais um dos novos contos para crianças, não diria?

Podia falar do homem que não sabia colher flores. Era eu o homem que não sabia colher flores. Por que não posso falar dele? A proibição está na lei? No cânone poético? No brilho duma estrela nunca avistado por um olhar ou na areia duma praia ainda não pisada por pés humanos?
Era uma vez um homem que não sabia colher flores
Bem que tentara, muito, muito tempo antes, algumas vezes
A cada vez sua mãozorra desajeitada conseguira apenas causar uma chuva de pétalas
Entristecendo o homem que não sabia colher flores
Pois lhe tinham assegurado que não existe graça numa chuva de pétalas
Sobretudo se gerada por uma mãozorra desajeitada
E que tomasse muito cuidado – “Não te deixes enganar! Duvide mesmo se a queda das pétalas provocar uma festa em tuas pupilas”
O homem que não sabia colher flores quis sorrir ante a advertência
Por sorte, se conteve a tempo
Não podia correr o risco – e se não fosse uma piada?
E, mesmo que fosse, não mudaria nada
Pois o homem que não sabia colher flores não sabia sorrir
Não que nunca houvesse sabido
Soubera, sim – muito, muito tempo antes
Só que fora perdendo o jeito
Um pouquinho por dia
Até que, certa feita, assim que sorriu
Sentiu-se muito, muito triste
E com os dentes já à mostra
Tentou cerrar os lábios entreabertos
Só que seus lábios entreabertos se recusaram a obedecer o comando do cérebro
Provocando uma dolorosa câimbra nas bochechas do homem que não sabia colher flores nem sorrir
Então, querendo conferir a expressão de sua cara, ele puxou a carteira do bolso de trás das calças (pois na carteira havia um daqueles espelhinhos que naquela época era comum guardar em carteiras) e levou um susto:
A mistura de alegria e tristeza produzira em seu rosto uma máscara indizivelmente medonha
Uma máscara mesmo desumana
Que inclusive lhe lembrava a dum chimpanzé
Na ilustração dum livro sobre vida silvestre que ganhara de sua irmã mais velha na infância
E o homem que não sabia colher flores nem sorrir levou os dez dedos ao rosto e tentou esticar a pele das bochechas para se livrar da medonha máscara
E, enquanto puxava os lábios para cima e para baixo e para os lados, compreendeu:
Era aquela a expressão de homens que não sabem colher flores nem sorrir
E não foi só isso que compreendeu
Compreendeu também que não é por não saberem colher flores nem sorrir que a esses homens não cabem direitos que são comuns a homens que sabem
E essa compreensão teve o poder duma bomba hiroshímica detonada no dedal de costura que sua mãe usava para cerzir suas meias de escola
E por um segundo o clarão atômico revelou todas as coisas

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