Hoje cedo escrevi um contículo inteiro ainda
de olhos fechados na cama sob dulcíssimos eflúvios oníricos. Meu contículo era mais
ou menos assim: a humanidade renunciara a utilizar armamentos em suas guerras
e, no lugar, passara a usar maçãs. Veja, a substituição das armas convencionais
pelas maçãs envolvia uma renúncia. Não
se tratava duma simples substituição, arbitrária, a troco de nada. Era, repito,
uma renúncia. Por que, não me lembro, lamentavelmente. Mas, como sói acontecer
nos sonhos de todos nós, havia algo de muito significativo na renúncia. E vital
– para o sonho e para mim.
Eu mesmo experimentava as delícias de
guerrear sob o novo modelo, empolgando gostosamente as frutas vermelhas na
palma de cada mão e, corajosamente, com o sentimento do guerreiro que cumpre
seu dever de guerrear sem maiores pudores, arremessando-os contra o inimigo. Este,
obviamente, me atacava de volta e eu me esquivava para não ser
alvejado. Enquanto isso eu dormia, ciente de que sonhava e de que o sonho chegaria
ao fim cedo ou tarde e, indiferente a essa ciência, prosseguia na batalha,
enquanto este meu cerebrozinho, sempre infatigavelmente ativo, ia urdindo as
mais fantásticas possibilidades, com cenas e situações bélicas transcorridas
debaixo dum fogo cerrado de milhares, milhões de maçãs a zunir pelos ares,
tingindo de escarlate os céus que num tempo longínquo, igualmente onírico,
sonho dentro do sonho, tinham sido azuis.
Fazendo o rescaldo agora, fumos imaginários
já dissipados, que engraçado como não estranhei estar tomando parte duma
guerra. A batalha me parecia natural, não combater é que me deixaria espantado. E
por que não tive medo, eu que sou um dos sujeitos fisicamente mais covardes que
conheço? E os inimigos? Quem eram meus inimigos? Não parei sequer um instante
para me perguntar. Vocês sabem, é esse tipo de “naturalidade” que os sonhos têm
de mais angustiante. Mais ainda quando o protagonista da ação é você mesmo, mas
um você absolutamente diferente, familiar e ao mesmo tempo desconhecido, um você
que você enxerga de fora e fica lá observando como se fosse uma terceira
pessoa. De repente aquilo que temos de apavorante dentro de nós se “materializa”
e, mesmo prevenido do paradoxo de algo a se materializar dentro dum sonho, você
engole em seco e “aceita” como aprendeu a aceitar as agruras da existência. De
repente você se vê transformado em outro, um outro que sabe também ser e que nunca
tem uma oportunidade de se manifestar durante seu estado de vigília.
As maluquices oníricas iam se
desenrolando sem que me atrevesse – ou simplesmente não me ocorresse – a fazer as
perguntas óbvias. Em momento algum perdi a noção de que estava dentro dum sonho, tão dentro quanto
pudesse estar duma nuvem em forma de jaula. E o tempo todo, naquele estado de sono acordado tão familiar a cada um de nós,
ficava me lembrando, não posso esquecer a sensação da maçã na
minha mão, preciso registrar a expressão do meu próprio rosto a cada arremesso
contra o inimigo, não posso esquecer de como me olho a mim mesmo como se fosse
outro, não posso deixar escapar esse mundo de impressões e sensações
perturbadoras, preciso gravar todos os detalhes para obrar um contículo do arraso,
vou correndo escrever assim que acordar...
E eis-me aqui, passado meu terno vendaval
interior que com sua ventania inesperada levantou o manto que recobre meus
segredos e botou meu mundo de pernas pro ar e mais uma vez trouxe à luz, a luz
que é minha, o que a cultura e a sociedade e a família e a escola me ensinaram
a esconder, eis-me aqui mais uma vez refeito do trauma, mexendo e remexendo
hesitante as evidências do incidente, eis-me aqui forçado, outra vez, a me
contentar com as sobras que minha débil consciência foi capaz de reter da
revelação inesperada. Como deve estar patente a esta altura, o contículo,
passada a ventania silenciosa e imóvel, virou farelo metafísico. Pela enésima
vez em minha brilhante, nada promissora carreira de escritor e poeta, me vejo
obrigado a me conformar em apelar à filosofice em vez de obrar literatura. Que
é que posso fazer? Isso mesmo, nada. Só me cabe, só me resta tentar ser
sincero. E, se lograr ser, me darei por grato. A quem? Às partículas, às enzimas e aos
aminoácidos que regem a vida.
Sinceridade, como já lhes disse também
incontáveis vezes, com a devida documentação de cobras como Rilke, Nietzsche, Heidegger
e companhia bela, não é pouca porcaria. Vocês sabem, na maior parte do tempo
somos rematados mentirosos. E quem é a maior vítima de nossas persistentes
mentiras? Acertaram de novo: nós mesmos.
O sonho é apenas uma das portas que podem
nos levar aonde interessa ir, ou seja, a nós mesmos como nosso destino. Ao
longo do dia e da noite passamos por incontáveis experiências que vamos
descartando por não estar treinados para reter ou por preferir o caminho fácil
das crendices e dos contos de fada. Gostamos de atalhos, somos preguiçosos. E crendices
e contos de fada são os atalhos que tomamos para nos elevar desse condição de
animais que somos e nos aproximar um tico que seja daquele conceitozão abstrato
que chamamos “deus”. Olho em volta e me assusto com a facilidade com que todos
se entregam a mentiras e promessas de viagem sem escalas ao paraíso. Mas, ao
contrário das promessas e mentiras feitas pelos políticos, aquelas em que caímos
feito patinhos são as nossas próprias. Ninguém nos engana tão eficazmente
quanto nós mesmos.
A sociologia talvez explique por que nos
entregamos tão singelamente ao que é comum, por que essa compulsão de fazer o
que todos fazem e ser o que todos são. Reconheço que precisamos ter visões em
comum com aqueles com quem partilhamos desejos e costumes e idioma e crenças. Mas
é sempre impossível fazer de conta que a tensão entre o social e comunitário
e o pessoal é assoberbante e pode nos sufocar ou nos libertar, dependendo da
nossa “natureza”.
Existe fora de mim uma onda que me
arrasta na direção em que as ondas correm e aprendi a duras penas, com o que
sou, que não nasci para pegar ondas. Gosto de flanar ao léu ao meu próprio
sabor. Escolhi para mim mesmo um caminho que exige que eu conteste e, quando
for o caso, me rebele – contra a onda, contra qualquer coisa que ache por bem
me rebelar. Não tolero discussões sobre o que sou, sobre como sou. Quase todo
mundo que conheço se julga no direito de julgar e sentenciar os outros. Comigo é
fria. Como escritor e poeta, e não importa se bom ou mau, só me sinto bem
tentando ser o que penso que sou, não o que a “comunidade” espera que eu seja.
Sempre fui assim. Sempre tive desdém pelo que é fácil. Nada, quase, para mim é “natural”.
Não espere de mim o mesmo que você espera dos outros.
A experiência humana é infinita,
provavelmente. Isso é fácil comprovar, acho. Olhe em volta e veja que existe
gente de todo tipo disposta a todo tipo de coisa. A maioria está a fim é da
experiência física, naturalmente. Esses vivem apenas um lado da moeda, buscando
incessantemente a gratificação de seus apetites imediatos. É gente que não
“aspira”. Se entregam de corpo e alma, aquela que não têm, ao agora e aqui. Nunca
lhes passou pela cachola que possa existir uma alternativa ao consumismo
doentio destes tempos de gula desmedida que vem produzindo obesos corporais e
emocionais. Se lhes mandam comprar, saem correndo e compram. Por que haveriam
de questionar? Os publicitários os têm nas mãos, títeres, mas quem está
ligando? Se alguém lhes dissesse que se deixaram escravizar, dariam de ombros,
debochariam. Alguns talvez até admitissem que, sim, escravizam-se com todo
prazer e se subjugariam ainda mais se isso lhes trouxesse mais recompensas
materiais. Moralmente, pagam um preço pela obstinada, ilimitada cupidez. Daí
inventam lemas moralistas como precisamos “estar de bem com a vida” (quer
dizer, faço o que for preciso para ter prazer) ou “o que interessa é ser feliz”
(sem imaginar que o conceito da felicidade absoluta possível também é invenção
da máquina publicitária para que eles, escravos, nunca cessem de buscá-la e
morram tentando, e gastando).
Depois dos que acreditam piamente na
necessidade de ter na garagem um carro do ano e na bolsa uma tranqueira eletrônica
que os conecte com o universo, vêm os meio incrédulos. Esses, por sua vez, desconfiam que o
“dinheiro não é tudo” mas não têm certeza por que, piadinhas à parte. Para o
próprio conforto espiritual – e, de quebra, justificar a própria incapacidade,
ou inépcia, de conquistar o sucesso material alardeado nas propagandas –, vivem
repetindo uns aos outros relatos sobre ricaços que quebram a cara na vida
apesar de abastados. Viu só o que houve
com o Zé Ricaço? No fim da vida os filhos o abandonaram numa casa de “repouso”.
Se tivesse se dedicado mais à família e menos aos negócios, hehehe. Bem feito, seu
Zé. Na próxima encarnação vê se manera na cobiça. Próxima encarnação? Peraí,
ainda não firmei convicção a respeito. Pode ser que sim, pode ser que não. O
que sei com certeza é que não posso descartar a possibilidade assim
sumariamente. E se tiver? Com que cara que fico lá no céu? Ou, glup, no
inferno? Por via das dúvidas vou apostar nos dois. Então o meio incrédulo
também descola um lema: nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Numas de meio-termo.
Bem-estar físico é bom mas cuidar do “espiritual” é essencial. Aí o meio
incrédulo decide que o negócio é “cultivar”. O jardineiro cultiva suas
roseiras, o agricultor cultiva suas alfaces, o meio incrédulo cultiva seu
espírito. Ou o pouco que o mundo do consumismo lhe permite vislumbrar como
espiritual. Só que ele ou ela tá mais a fim é de curtir – sabe como é, a vida
é curta, só pra lembrar mais um lema –, apela ao ready made. O “espiritual” pronto de fábrica pode ser qualquer
coisa rotulada como tal e não escancaradamente consumista: um cultozinho de vez
em quando no “templo”, um livrinho básico do Paulo Coelho, uma psicografia do
Chico Xavier, quem sabe uma assinatura da Veja ou mesmo a Isto É, e o cineminha
com o mais novo ready cult do Lars
von Trier, esse não pode faltar. Que mal há em estar na onda, não é mesmo?
Mesmo que seja c’uma ajudazinha de Hollywood, o mais possante braço da
indústria cultural e que, ao fim e ao cabo, gera para nós deslumbrados com a
infinitude da exploração sensorial esse maravilhoso mundo das compras que
habitamos sonambulamente.
Somos tão fraquinhos, tão indefesos, tão
pequeninos. Nossa pequenez e nossa fraqueza nos faz pretensiosos. Acho mesmo
que são a evidência maior de que vivemos em estado permanente de delírio. Nos explicam.
Sendo pequenos e fracos, geramos deus. Não deixamos por menos – partimos logo
para um ser mágico que garante uma justiça acima do nosso poder de compreensão.
Você pode alegar que a cultura ocidental se desenvolveu sob a lógica cartesiana
nos últimos quinhentos anos, mas os crédulos retrucarão que Ele é tão fantástico,
que se faz disponível apenas aos que creem. E, quando você achava que estava
chegando perto de apaziguar dentro de si a imensa incompatibilidade entre espírito
e matéria, eis que eles dinamitam a lógica e te botam de quatro a mugir para os
fenômenos inalcançáveis que nos governam.
Deus é uma pretensão, o comando dos
astros é uma pretensão. E nem é preciso recorrer à ciência para comprovar. Deus
é pretensão porque está fora de mim. Não faz parte da minha experiência. A menos
que me provem que basta crer para que Ele se materialize. Quer insultar alguém
de forma cabal e definitiva? Lhe diga que deus não existe. Vai lhes tirar o chão
de sob os pés, aniquilar sua razão de ser e existir. Não lhes ocorre que deus e
a crença nos astros são apenas conceitos herdados, como milhares de outros. E está
mais que patente que essa tecnologia diabólica que nos controla hoje haverá de
aniquilar o conceito da divindade. Eles deixarão de crer em deus para crer nos
super-homens da técnica. E talvez sempre haja em algum canto um espírito de
porco que nos re-lembre de Heidegger.
Seja como for, essa lenga-lenga é apenas
pretexto para escrever. Tal como meu sonho com as maçãs que tomaram o lugar dos
armamentos no meu mundinho particularíssimo. Que belíssima palavra essa, particularíssimo.
Sou particularíssimo. Gosto de ser particularíssimo. Nasci para ser particularíssimo.
E em meu mundinho particularíssimo não existe lugar para concepções urdidas sob
delírios de terceiros. A mim me bastam os meus. Se a maioria vive uma mentira
coletiva, optei por forjar a minha própria. (A menos que me provem que a
maioria está certa simplesmente por ser maior.)
Mentira por mentira, prefiro as minhas.
As que, tal como meus sonhos, brotam de dentro de mim, à minha revelia, infensas
ao meu controle consciente, primitivas, atávicas, que me ligam primevamente a
cada ser que existiu antes e por isso mesmo me levam a especular sobre uma
natureza comum a todos nós, as que não me são estranhas nem invasivas, as que
me possibilitam deduzir e concluir com base no que sinto, não no que me dizem
que devo sentir.
Meu sonho me prova que há uma ligação
inquebrável entre mim e o resto da humanidade. Eis a experiência que conta. Não
preciso, nem quero, fazer especulações sobre o papel dos astros, a influência
deles em minha personalidade e em meus pensamentos. O que tenho em mim me é não
só o bastante mas muito, muito mais do que sou capaz de dar conta poeticamente e
literariamente ou de qualquer modo que seja e essa merreca é tudo que me
importa. Não preciso de crenças inventadas por outros que optaram por se
alienar de si mesmos e ir “buscar” a verdade em contos da carochinha que podem
ser sedutores e produzir catarse mas nos separa e nos afasta de nós mesmos
porque experiência ensinada, não experiência vivenciada.
O sonho é a experiência ainda não traduzida
pela consciência e, por isso mesmo, fonte fidedigna do que sou.
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