Hoje lembrei de Serge Gainsbourg (ai ai
ai me apaixonaria instantânea, fulminante, sem-voltamente por Jane Birkin, se
ela quisesse deixaria que me suicidasse; como foi se apaixonar por aquele caolho
nariz de camelo de orelha de abano e pálpebra de lagarto?), depois lembrei da
minha primeira jaqueta jeans, aquela com que ia nos bailinhos pra dançar J’e t’aime (abril de 1969, fui com mamãe
comprar na Augusta, então centro comercial chique, o chóping Iguatemi ainda nem
estava concluído (logo cedo de cada dia papai perguntava a mamãe, vai na cidade hoje, Tita? e no dia
seguinte mamãe perguntava a papai, vai na
cidade hoje, Tião?). Estranhei por uns anos essa mania de chamar Sampa de
cidade, depois esqueci de estranhar (o que não significa que me acostumei –
nunca me acostumo com nada – nada).
Me acho cada dia mais estranho, mais,
mais. E mais.
Tenho umas coisas que, além de nunca me
habituar com, não tolero. Por exemplo, uya, não pensava que a lista fosse tão
comprida.
Por exemplo, não tolero em mim como os
outros me olham na rua. Também não tolero em mim a cor esmaecida do céu e não
tolero a pressa com que as nuvens deslizam por cima da minha cabeça.
Às vezes não tolero em mim a visita dessa
inspiração que me obriga a escrever como eu fosse poeta. Não sou poeta, já
disse e cansei de repetir. Mas nem eu mesmo acredito.
Apesar desta longa lista de auto-intolerâncias,
um dos meus textículos de que mais gosto é aquele pekuithitho cujo link está no
alto desta página, Por que gosto de mim.
Quando leio – vivo relendo meus textos, sou meu maior leitor, sou meu maior
escritor –, lembro direitinho e detalhadamente cada uma das sensações dentre a
miríade que me acossam quando escrevo (seja a porcaria que for, devo acrescer,
embora saiba que vocês haverão de discordar da minha auto-incomplacência). Acho
que cheguei pertinho assim de me descrever nesse texto. E se ainda fosse pouco,
se trata duma síntese do meu estilo ligerário. Estou ciente de que meu estilo é
foda. Há uns tempos uma pessoa aí disse que repito
demais as palavras (sic). Como se ainda fosse pouco, tentou me sacanear
citando um desses profes tipo pasqualino nenhuma beleza, esses carinhas que dão
aula em cursinhos e “redigem” “manuais” de redação desses que a Folha e o Estadão
dão para jornalistas recém-formados. Não respondi na hora, sou rapaz distinto. Vou
respondendo, aqui entre nós, a conta-gotas. Por que essa gente se acha no
direito, francamente.
Comecei a escrever mais ou menos a sério
aos doze aninhos. Se me dissesse isso, me responderia, e até agora não aprendeu?
Poizé. Escrever não é batatinha. Se quiser
atingir o alto-mar, você tem de passar por aquela zona de arrebentação onde a
maioria de nós aventureiros perece. É exatamente aí onde me encontro neste
momento, sacolejando ao sabor dos ventos e dos vagalhões, submergindo sob a
espuma gerada pela tormenta, apavorado com a ideia de cruzar a linha do
horizonte e perder contato com minha estimada Zezeí. E, definitivamente, é
exatamente aqui onde haverei de me afogar. Eu e mais umas dezenas de milhões
que estão na mesma situação mundo afora. O que não falta é candidato ao Nobel.
Mas não vá me confundindo com a ralé
literária, ainda não terminei.
Tenho uma imensa diferença com o pessoal
por aí que escreve em blogs e em outros “suportes” que ninguém lê – eles se
levam a sério.
Você conhece chato maior do que quem se
leva a sério?
E não são apenas os que escrevem. Os há
de tudo que é jeito em tudo quanto é lugar. São os que têm respostas para todas
as dúvidas e opinião sobre todas as coisas. Os que jamais disseram, uma vezinha
que fosse, “não sei”, nem permitiram que seu olhar vagasse pelo espaço a sonhar
com as mil infinitas possibilidades de expressar um pensamento ou registrar uma
impressão. Os chatos funcionam em circuito fechado. Os chatos se bastam. Desde cedinho
na vida aprenderam a cercar-se duma muralha de convicções, convicções nascidas
não da experiência mas desse instinto medonho que os chatos têm de se
autopreservar a qualquer custo. Mesmo ao custo de ser insuportavelmente chatos.
O chato nunca duvida do que pensa, menos
ainda do que diz. Quando o chato se pronuncia (pois os chatos não falam
simplesmente), vejo, aqui de fora, o olhar dele ou dela envergar sob o peso da
certeza presunçosa. E não pense que a chatice desse tipo de chato depende de
seu grau de “sucesso” na vida. Nada disso. Conheço chato cheio da nota e chato
mais duro que a Dilma dançando chá-chá-chá. Jesus mio, quantos chatos eu
conheço.
Ontem lembrei de e mencionei Descartes, o
cara que levou a dúvida aos píncaros da genialidade libertadora e que por isso
mesmo fundou a filosofia moderna, e o nomezinho ficou pulsando na minha cabeça
até agora e eis que sai quase terapeuticamente. Tal como Renatus Cartesius, o nome
latino com que gostava de assinar, também duvido.
Duvido de tudo. Duvido do que penso. Duvido
do meu riso e do meu choro, me olho com esta minha carranca de bravo no espelho
e duvido da minha honestidade.
Acima de tudo, duvido do que escrevo.
Mal alinhavo três palavrinhas no editor de
texto do blog e já não tolero a suruba que elas aprontam à minha revelia. Filhas
das putas de palavras. Não há como alinhá-las, rearranjá-las, trucidá-las,
ressuscitá-las sem que tirem uma da minha cara de rapaz distinto que não se
leva a sério.
Certa vez não lembro quem cruzou com Joyce,
acho que na Itália, onde ele dava aula de inglês, e estranhou a expressão de
alegria dele e ele respondeu que ganhara o dia por ter conseguido escrever uma
linha inteira. Será a mesma que o carregou para o alto-mar?
Elas riem de mim mas sei que me entendem,
no fim. Se não me entenderem, quem haverá de? Se nem eu mesmo (...)?
Tem uma coisa que não tolero em mim acima
de todas as outras.
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