Andanças sem rumo pelas ruas desarrumadas como
aos quinze. Estou, e me sinto, tão desarrumado quanto. O mundo vem na direção
contrária, aproveito e avanço contragiro, furando a ventania com meu nariz
aerodinâmico.
Tenho essa colossal preguiça de viver e essa
gosmenta preguiça de ser, ai que vontade de fechar os olhos e dormir andando. E
chegar lá no fim feito aqueles sujeitos que nascem mortos e mortos morrem, e
nunca tiveram de se questionar essas perguntas supérfluas que nós vivos-mortos nos
achamos obrigados a fazer a nós mesmos. Antes de morrer quero ir ao Saara e
fechar os olhos e caminhar até que um camelo me devore ou meus pés despenquem
dentro do Estreito de Gibraltar ou um fanático do Estado Islâmico me arranque a
cabeça pensando que sou mais um americano maluco com seu alucinado pendor à
liberdade inadjetivada.
Frequentemente tento me imaginar cego. Tento me
imaginar uma porção de coisas o tempo todo, mas tenho um fascínio particular
pela cegueira. Um segundo imaginando e vem o calafrio do pavor em algum ponto
entre as vísceras e o lombo. Minhas vísceras são extremamente sensíveis. Vivem sobressaltadas,
coitadas. Ou melhor, vivem sobressaltadas, tadinhas. Pra não rimar. Não há nada
pior que rima acidental. E proposital também. James Dickey dizia que truques
como a rima destroem o relato da experiência. É ou não é uma bela sacada?
Avisto uma feiosa despontando lá diante. Em geral
prefiro as feiosas. Poucas mulheres são tão apetitosas quanto uma feiosa bem
feita de corpo. Na facul chamávamos canhão glamuroso. O segredo, diziam, era
comer sem olhar a cara. Esses caras machistas não sabem de nada. A graça tá é
na cara, praticamente todos os casos são assim. Não há nada – repito, nada –
fascinante como um rosto. Se alguém me dissesse esse insight, eu bocejaria de tédio ante a vulgaridade. Mas, qual a de
Dickey, não deixa de ser uma grande sacada no contexto deste mundo digital abarrotado
desse mundo de gente banal e suas incríveis banalidades. Um rosto pode te transportar
do sublime ao estarrecedor ao perturbador ao apaziguante. Daí a importância, e
o prestígio, dos grandes atores de teatro. Daí, também, a pobreza da tevê, do
cinema e da fotografia. O que mais me espanta nessa gente que produz
pornografia é a tara açougueira e o descaso com a expressão do rosto humano. Esses
filmes de duas horas inteiras c’um entra-e-sai letalmente mecânico em que garanhões
negros superdotados comem enfermeiras histéricas simulando uma lascívia
estereotipada, mon dieu. Por um excesso de misancene muito menos fingido já
brochei um mês inteiro.
Epa, alarme disparado. Minhas pernas vão
aumentando as passadas, meus parágrafos, espichando em tamanho. Preciso tomar
cuidado com a filosofice.
E as feiosas são as mais genuinamente safadas. Desenvolveram
uma noção corporal pela própria condição, ai ai ai. As bonitas, de tanta
paparicação e língua de fora, acabam se alienando de seus corpinhos tesudos. O
approach me-idolatrem é tão brochante quanto. Ninguém é mais chato que mulher
bonita que se acha deusa. E quando a beleza entra na reta final, o tombo é de
levantar poeira. Já vi pessoalmente. Trágico.
As feiosas vêm às dúzias. Têm essa mistura convidativa
de utilidade e predisposição à simpatia que em geral redunda em mães dedicadas e
irmãs amistosas. Graças aos céus são a maioria. Também sou feioso, deo gratia. Não
conheço nenhum homem bonito decente, really. A maior vingança da literatura
contra a beleza – injustificada porque nata/herdada – é o Retrato de DG. Tinha de vir dum gay. A inveja do gay é insuperável.
Somos todos predestinados em maior ou menor
grau. Digo, nas democracias. Nas ditaduras “socialistas” todo mundo se dá mal
menos a nomenklatura. O Zezinho Bocó Jr. morre de orgulho dos traços que herdou
do Zezinho Bocó Sr. Eis uma das grandes estruturas que seguram este mundo que
fizemos. Adolf, Joseph, Benito e outros menos cotados trucidaram centenas de
milhões de homens e mulheres inspirados por esse princípio. Seremos livres defacto o dia em que nos aceitarmos zés-ninguéns.
Por ora ninguém quer ser zé-ninguém, nem mesmo o zé-ninguém suicida Reich. Levei
pelo menos quatro décadas da minha vida pra concluir que não sou predestinado. É
fato duro de aceitar.
Os vivos-mortos vêm vindo quentes e tento me
lembrar quantos poemas e quantos poetas se imaginaram incendiados. Alguns se
imacularam pelo fogo de fato. Lembro dum rapazola na década de setenta, se não
me engano, na Alemanha, que decepou o próprio pênis por alguma causa política. Prato
cheio pra psicólogas formadas em fundos de quintal com quase três livros lidos
na “bagagem”. É desses “especialistas” que estamos nas mãos de. Lula se orgulha
de nunca ter lido um só livro. Deu no que deu. E tem mentecapto por aí que
imagina que a ignorância é a saída para os impasses da civilização.
Creia, não há sentimento mais redentor que
avançar pelas ruas isento do fardo da predestinação. Em raríssimos momentos
como este logro compreender o espírito andarilho. E os miseráveis que escolhem
romper com seus fantasmas herdados.
Hoje também entendo os que cedo na vida optam
por se trancar em seminários, mosteiros e que tais.
É mentira. Entendo porra nenhuma. A única coisa
que continuo entendendo são os poetas incendiados de sonho e poesia. Não vou
destrinchar, não se preocupe. Sei que é tema sacal, atraente apenas para os
envolvidos. Mas o que tem de gente falando besteira sobre poesia por aí é dose.
Inclusive autointitulados críticos e congêneres. E no fim toda essa gente, eu
incluído, não passa de afetados mentais escravos de vaidade mórbida. Ninguém dá
merda nenhuma pela poesia, apesar dos bilhões que gera em simpósios e títulos nobiliárquicos
e cargos em universidades. Eis um princípio xifópago da “predestinação” e
tantas mentiras pelas quais nos matamos.
De repente dou de cara c’uma favela. Hora de
voltar. E me calar. Não existem palavras que deem conta duma favela. Digo,
honestamente. Ou, no dizer da Marina, “repertório”. Marina é uma
lumpencampesina do século 21. Ai Santa Mãe, sinto lá no fundinho a comichão. Nenhuma
palavra vai dirimir nenhuma das nossas contradições. Como é óbvio, nossa história
de atrocidades não findou com Hitler. Ou com Lula.
O segredo de andar, e escrever, é não deixar
ninguém tomar conta dos seus passos, ou das suas palavras.
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