antes de nada

Como disse platão n’A república, “rj fJav/nuTa TioÀá, xaí Jcov Tl xai figottov”, ressalvando que “páxtç vTíèo xòv aXaOij kóyov òeòaiòaXfiévot rpevôeat noixlXoiç è£anaTãVTi nvdor Xáotç d <è>fioi fivoía navrai XÊÀEVDOÇ vfjíeréfjuv âQfnàv Vfivetv, xvttvon Ofiáuov d'ëxati Níxaç yalxeooTéQvov TAoro”.
Com igual contundência, embora sem igual congruência, Sócrates, quase cinco séculos depois, retrucaria que “Òè xavxa FïQ ôtôaaxáXcov Ttéfinovteç TIOV ftãXXov èvxêXkovxai èmfÀeAeïaQcu evxoofilaç zãv Ttaiômv íj yQctftfiéxcov XF xai xidagíaeaiç' aí Òè ÒiôáaxaXoi TOVXOJV XF èmfAeXovvrai, xai FTiFiÒàv nv yoápfiaxa nádwatv xai fiéMootv OVV/JGFIV xà ysyoa niéva majiFo XóXF Toiotv ôvslôsa xal ipôyoç èorív, yJ.éjTTetv fioiyeveir re xai àXXrjXovc, ãnare vêtevê”. (Não deixem de tomar tenência deste último termo, chave para a hermenêutica da coisa.)
A discussão levada a termo pelos grandes filósofos viria a embasar por três milênios e algumas horas o pensamento ocidental de cabo a sargento e daí a coronel e na certa tanto Aristóteles mataria a cobra ao passo que Cleômaco mostraria o pau em “yoa fiápfiaxéootv x ádwatvai”, como em tantos outros de seus livros. Fico cá pensando quão esbalacobacoso devem ter sido aqueles tempos. Se um dia estudar grego, haverei de entender um pouco o que esses caras escreviam tanto e traduzirei pros meu quase dois leitores e três quartos por uma módica soma em garrafinhas de smirnoff. (Uau, taux ficando bom até em aritemática.)
Chega de seriedade. Relaxemos nesta fu-nesta noite sabadal.
Quero falar da Lídia.
Lídia leva os cabelos bem castanhos roçando os ombros.
Lídia tem as pernas fortes. (Tenho medo de mulher pernuda. A gente nunca sabe.) As coxas não são de fechar aquilo que coxas desejáveis de mulher são capazes de fechar, mas as panturrilhas da Lídia, jesus pai. Começaria mordiscando os calcanhares, ou um dos, e iria subindo passando pelas laterais dos pés, depois os tornozelos salientes, as canelas, as batatas, atingiria as rótulas, nhac! Abocanhava a gruta, gruuuuuu, grãããã, schelepleplep, sem paciência pra avançar progressivamente por coisas chatinhas como virilhas e etecê. (Já viram gente que escreve “e” etc.? São a base da pirâmide analfabética.)
O (maior) problema da Lídia são as joanetes. Quando era moço, hehehe, primeira coisa, checar joanetes. Se positivo, dispensava. Dilma, pague uma plástica pras joanetudinhas, please. Seus maridos, noivos, amantes e/ou namorados padecem horrores com aqueles promontórios deformados. Lídia caberia direitinho numa fábula da pavoa.
Paro no portão, estudo o sobradinho por uns segundos. Meio apertado mas denota grana, sacumé (sorry, também detesto essa merda de sacumé mas tem hora é imprescindível), exala aquele ar meio nobre de gente bem. Estudo e olho pras janelas do andar superior e olho pros dois lados da rua e aperto a campainha e encosto na parede aguardando. Você não vai acreditar, repito, você não vai acreditar, mas jamais, nunca, never apertei uma campainha mais d’uma vez. Sou um cavalheiro (apesar deste meu jeitão desleixado de vagabundo sagaz e cínico).
Às vezes Lídia sai no ato, outras, leva uns minutos. Mas nunca além do razoável.
A porta se abre, aí vem ela.
Identifico a saia de tergal enxadrezada por trás do vidro esfumaçado da porta. Preto, branco, cinza.
Segundo hit, os pernões. Jesus pai. Que é que me impede de ajoelhar aqui nesta calçada e, quando ela se aproximar, meter a cabeça por debaixo da saia plissada e lhe tascar uma lambida de jum-ento sed-ento por sobre a calcinha rendada? Hã?
Eu, eu me impeço. Sou um bastardo hiperpensativo. Por que papai não me ensinou a dar vazão aos meus instintos, mesmo animalescos, ao invés de ficar me preservando pra festa de formatura do ginásio?
Bom dia.
Bom dia.
Lídia sorri um sorriso pr-otoc-ol-ar. Não espera que eu sorria de volta. Fazer o quê? São assim os donos, e as donas, do mundo.
Ela se põe a subir a rua, me apresso a me posicionar do lado de fora da calçada, como papai me ensinou.
Caminhamos oito quarteirões sem trocar um pio, machos dos oito aos oitenta torcendo o pescoço pra investigar os pernões da Lídia, que não passa recibo d’um único que seja, que aplomb. Se um dragão me olhasse cobiçoso na rua, juro que me desmanchava derretido feito as asas de Ícaro (nada haver, tudo bem, vou pensar numa outra imagem depois).
Chegamos ao Instituto, Lídia se perde no meio da multidão de alunos, faço um back-off discreto ao lado da portaria, tiro um cigarro, fico olhando o movimento. Seria supérfluo adir que sou um fudido mas ado mesmo assim. E Lídia sequer desconfia.
Passa um carro emperequetado sacolejando sob um rock a dois mil decibéis. Tenho um insight auto-iluminador sempre que testemunho um neandertal escutando rock. Não é à toa que eles têm aquelas caras de imbecibéis.
Hum-hum (limpando a garganta, solene), é de Fernando Pessoa o mais belo poema de amor da nossa língua.

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de maos enlaçadas.
(Enlacemos as maos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as maos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as maos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço

Claro, evidente e óbvio que aquela manhã levando Lídia pra escola sobe de elevador pra flor do meu cérebro e fica lá exalando seu perfume mortalmente mnemônico, nem imagino pra quê ou por quê. Deus certamente não tinha mais que fazer quando nos dotou desse tipo de “habilidade” (skill).
Pessoa escreveu esse poema sob Ricardo Reis. Os heterônimos do cara me torram o saco porque levantaram a bola pros profes explicadores da vida, que lhe escarafuncharam a alma até dizer chega. Em nome de quê? Da crença, logicamente, no futuro da espécie.
João Cabral não ia muito com a cara de Pessoa. Claro, Oi e Vivo.
“O que acontece é que ele tinha essas coisas geniais – sentir pensando e pensar sentindo – mas em tudo o que publicam aí com o nome dele, tem muita coisa que não interessa. Penso que Fernando Pessoa é um poeta extraordinário. Mas acho que, geralmente, lhe pegam pelos aspectos menos interessantes da sua obra. É seu excesso de subjetivismo que interessa aos brasileiros”.

What else Cabral podia dizer? Eles não admitem mas competem pra caráleo entre si. As ressalvas nesse comentário de Cabral não são suficientes pra desbaratinar a dor de cotovelo. Não dá pra encarar Pessoa. Por mais genial que Cabral tenha sido. E foi. Pessoa, infinitamente complexo, se expôs em suas plenas virtudes... e defeitos. “Excesso de subjetivismo” é apenas um dos mais maneiros. Sentimento demais pro cerebral bral Cabral, ultraparcimonioso em seus sintagmas hiper-enxutos de nordestino ressequido. Pessoa teceu vários poemas para Lídia, deste divino a outros constrangedores. Eis onde pega. Pessoa se entregava às suas personas e não dava lhufas se soaria ou deixaria de soar patético. Cabral era um sofredor da economia compulsória do agreste, evite passos, gestos, vocábulos supérfluos, a energia dispendida poderá fazer falta na miséria da caatinga. Fico cá imaginando a tonelada de poemas que o Cabral com “excesso de zelo” deve ter incinerado com vergonha dos próprios sentimentos. Só sei que é impossível ler um logo depois de ler o outro. Uma quarentena se impõe. Viver é foda. Não tanto quanto...